O confronto com criminosos e a alta letalidade que marcaram a ação policial para cumprir cerca de cem mandados de prisão nos complexos da Penha e do Alemão, onde fica o “quartel-general” do Comando Vermelho no Rio de Janeiro, eram inevitáveis nesse tipo de operação, segundo analistas de segurança ouvidos pela Gazeta do Povo.
O episódio deflagrou uma crise política, especialmente após o governador Cláudio Castro (P-RJ) afirmar que o problema das facções no Rio extrapola a segurança pública, sugerir o uso das Forças Armadas e criticar decisão do Supremo que dificultou por cinco anos a entrada da polícia em favelas.
A operação vem sendo considerada a mais letal da história do Rio de Janeiro por ter resultado nas mortes de quatro policiais e ao menos 60 criminosos. Dois moradores ficaram feridos, 81 suspeitos foram presos e mais de 90 fuzis foram apreendidos. Criminosos usaram até drones rudimentares para bombardear as forças policiais. Até então, a operação com o maior número de mortos contabilizados havia sido em 2021, no Jacarezinho, quando 28 pessoas morreram.
Analistas ouvidos pela reportagem afirmaram que apesar desse tipo de operação não resolver o problema do domínio territorial exercido por facções criminosas no Rio, ações de força precisam ser feitas periodicamente para os grupos criminosos não consolidarem seus Estados paralelos. “São operações necessárias, porque chega a um determinado momento que é melhor fazer isso que não fazer nada”, afirmou o analista George Divério, do Núcleo de Estudos Estratégicos do think tank Iniciativa Dex, que já atuou em forças de pacificação da ONU na Síria e em Angola.
O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, criticou a ação do governo do Rio, afirmando que poderia ter havido mais planejamento, inteligência e coordenação entre as forças de segurança. Apoiadores do governo, como os deputados Tarcísio Motta (PSOL-RJ) e Lindbergh Farias (PT-RJ), afirmaram que a polícia poderia ter sido menos letal se tivesse usado melhor os dados de inteligência.
“Quanto mais inteligência você tiver, essa inteligência vai levar você perto de algo significativo, de alvos importantes. Mas você não vai conseguir chegar perto desses alvos sem luta. Estamos falando de grupos que reúnem literalmente centenas de homens armados. Eles possuem aquilo que é mais moderno disponível no tráfico internacional de armas e uma fartura incrível de munição”, disse Alessandro Visacro, analista militar autor dos livros “Guerra Irregular” e “A Guerra na Era da Informação”. Em outras palavras, nessas regiões não é possível prender um líder do tráfico enquanto ele está dormindo em casa, sem confronto.
“Se fala muito em letalidade policial no Brasil, mas isso seria um problema fácil de resolver: é só você manter preso aquele cara que a polícia prende. Quando chega a um nível de um indivíduo desses enfrentar a polícia é porque ele já tem várias passagens, uma carreira criminal”, afirmou Visacro.
O governador Cláudio Castro afirmou que a operação vinha sendo planejada há 60 dias e foi necessária porque a Justiça determinou o cumprimento de uma centena de mandados de prisão, entre eles de líderes do crime organizado no estado. Ao menos duas lideranças foram capturadas, segundo o governador.
Os complexos da Penha e do Alemão são usados como refúgio não apenas por criminosos do Rio, mas também por lideranças de grupos de outros estados, porque a polícia dificilmente entra na área para cumprir os mandados de prisão. “O criminoso do outro estado fica la dentro protegido e dando ordens pelo telefone. Então quando você o prende, também diminuem os assassinatos e os crimes em outras regiões do país”, afirmou o coronel da reserva Fernando Montenegro, ex-comandante da ocupação das Forças Armadas nos complexos do Alemão e da Penha nos anos de 2010.
“Eu fico tentando entender o que a maior concentração de tropas da América Latina, que está no Rio de Janeiro, está fazendo aquartelada enquanto a cidade está em guerra”, afirmou Montenegro.
Ajuda das Forças Armadas teria trazido melhores resultados à operação?
Segundo Montenegro, as Forças Armadas poderiam ter ajudado na operação em alguns cenários. Os militares possuem equipamentos de guerra eletrônica que poderiam ter sido usados para impedir que os criminosos usassem drones para lançar artefatos explosivos sobre as forças de segurança ou cortar as comunicações por rádio ou telefone celular dos criminosos durante o confronto.
Além disso, as Forças Armadas poderiam ter usado seus próprios drones, além de um grande contingente de atiradores de elite e blindados mais resistentes que os das polícias civil e militar. Segundo o analista George Divério, do DEX, helicópteros das Forças Armadas poderiam ter desembarcado uma grande quantidade de tropas na região de mata no alto do Complexo do Alemão, para fechar um cerco contra os criminosos.
Os militares também poderiam mobilizar grande número de homens para se somar ao contingente policial. Analistas ouvidos pela reportagem afirmam que a presença massiva de tropas poderia fazer os criminosos evitarem confrontos mais violentos.
A ação desta terça-feira incluiu dois helicopteros, 32 blindados e 12 tratores e escavadeiras para demolição de barricadas e cerca de 2.500 policiais. Em novembro de 2010, quando 2.600 policiais e militares fizeram uma operação inédita, que resultaria em uma ocupação de dois anos da mesma região, os criminosos decidiram fugir sem lutar. Em 2018, durante a Intervenção Federal no Rio, as Forças Armadas ocuparam os complexos do Alemão e da Penha por uma semana com um contingente muito maior, de 4.200 homens. Houve confrontos na chegadas das forças de segurança, que resultaram em cinco mortes, mas depois os criminosos remanscentes deixaram o local sem duas armas disfarçados de moradores.
Segundo Divério, a grande presença de agentes pode ter um efeito dissuasório, mas o resultado final da ação sempre será imprevisível, especialmente em um momento em que o crime organizado tem mais acesso a recursos e armamentos. Ou seja, os bandidos podem reagir mesmo contra tropas muito mais numerosas.
Segundo o advogado especialista em segurança pública Alex Erno Breunig, o uso das Forças Armadas teria feito diferença na megaoperação. O analista avaliou que elas teriam como contribuir, “desde que tivessem sido incluídas desde o início do planejamento da operação”.
“Não temos certeza, no entanto, que as Forças Armadas aceitariam participar desse tipo de operação no momento político atual, pois o potencial de confrontos é muito alto, com repercussões midiáticas muitas vezes desfavoráveis à manutenção da ordem pública”, afirmou.
O governador Cláudio Castro afirmou que o problema do crime organizado não é mais um problema só do estado, sugeriu o uso das Forças Armadas e disse não ter pedido e não recebido ajuda do governo federal. “O Rio está sozinho nessa guerra”, afirmou em entrevista coletiva.
O ministro Levandowski reagiu em uma outra entrevista durante viagem ao Ceará afirmando que o Ministério da Justiça não recebeu pedido de ajuda sobre essa operação.
Castro afirmou que já havia pedido três vezes o empréstimo de blindados das Forças Armadas, mas recebeu seguidas negativas do Executivo e por isso nem teria feito o pedido para a atual operação. “Em vez de chorar à toa a gente foi tocando a vida sem o governo federal”, disse.
O Ministério da Defesa disse por meio de nota que o governo do Rio havia requisitado blindados da Marinha somente em janeiro, em um pedido relacionado a um caso em que uma oficial general foi morta por um tiro durante uma cerimônia militar em dezembro de 2024. O pedido foi negado com base em um parecer da Advocacia-Geral da União segundo o qual o empréstimo só poderia ocorrer com a decretação de uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem autorizada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que vem se mostrando contrário a esse tipo de ação desde o início de seu terceiro mandato.
Decisões do Supremo, câmeras corporais e aumento de penas não resolverão problema no Rio
De acordo com o analista Alessandro Visacro, nenhuma solução individual resolverá o problema das facções e da letalidade no Rio “como uma bala de prata”. Segundo ele, o momento de comoção propicia o surgimento de ideias como uso de câmeras corporais pelos policiais, leis para aumentar penas de reclusão ou decisões do Supremo Tribunal Federal para limitar as ferramentas de ação da polícia nas favelas cariocas, como foi o caso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como ADPF das Favelas.
Segundo ele, a presença de grupos armados criminais controlando território no Rio já deixou de ser um problema de polícia ou de Forças Armadas, mas sim uma questão complexa que tem que ser resolvida de forma sistêmica pelo Estado como um todo.
Ele compara as ações que ocorreram até hoje no Brasil com abordagens de contraterrorismo, onde as forças de segurança vão ao local e atacam a ameaça, ou seja, em uma abordagem centrada no inimigo.
Mas uma abordagem mais eficaz seria a da contrainsurgência, doutrina centrada na população e não apenas no criminoso. Ela envolve ações de força como da terça-feira (28), mas está mais focada na alteração de condições sociais, culturais, econômicas e políticas que dão origem à violência. “Para isso é preciso tempo, recursos, capital político e liderança”, afirmouVisacro.
“A polícia fez o papel dela, mas ninguém mais fez os seus papéis”, afirmou o analista.
Rio contesta recurso do PSB e da Defensoria que tenta reendurecer ADPF das favelas
O governador Cláudio Castro culpou a “maldita ADPF das Favelas” como parcialmente responsável pela consolidação do crime organizado nos complexos da Penha e do Alemão.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 é um instrumento, clasificado por críticos como ativismo judicial, que foi usado em 2020 para limitar o poder de atuação da polícia em favelas do Rio.
Com o argumento da pandemia, o Supremo tornou as operações da polícia em favelas eventos muito excepcionais. Policiais passaram, por exemplo, a ter que avisar a comunidade e as agências envolvidas com antecedência sobre cada ação – o que permitia o vazamento de informações e colocava os agentes em risco. Também foi proibido o uso de helicópteros como plataformas de tiro e o estabelecimento de bases temporárias da polícia em escolas vazias.
Todos os analistas ouvidos pela reportagem afirmaram que a ADPF não criou o problema do domínio territorial no Rio por facções mas o agravou muito. Isso porque na prática a polícia diminuiu a frequência das operações e os criminosos tiveram cinco anos para acumular recursos e construir fortificações, como barricadas, seteiras e casas matas.
As exigências foram flexibilizadas em abril deste ano por decisão do ministro Edson Fachin e as operações voltaram a acontecer. Mas a Defensoria Pública e o PSB entraram com um recurso no STF para reendurecer a regra. Na prática, as operações nas favelas continuaram, mas com menor frequência e com a efetividade muito mais limitada.
Na semana passada a Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, órgão de defesa judicial do estado, defendeu a decisão final do STF proferida em abril e contestou recursos apresentados para manter o atual status quo.
O ministro Alexandre de Moraes acabou assuindo teporariamente a relatoria da ADPF e pediu um parecer da Procuradoria-Geral da República em 24 horas sobre a a operação desta terça-feira.
“Esse cenário se soma a um impasse político-ideológico: enquanto a esquerda enxerga a criminalidade como consequência de desigualdades estruturais, a direita tende a associá-la à necessidade de repressão e punição rigorosa”, analisa Adriano Cerqueira, cientista político e professor de Relações Internacionais do Ibmec-BH.
O professor lembra ainda que o tema da segurança pública deve ganhar força no debate eleitoral do próximo ano. “Há um elemento eleitoral claro. O governo Lula adota uma postura de enfrentamento mais brando, enquanto o campo conservador, representado pelo PL e aliados, defende ações duras e repressivas”, acrescenta Cerqueira.
Operação no Rio provoca embate no Congresso
A operação no Rio de Janeiro provocou imediata reação no Congresso Nacional e acirrou o embate político entre governo e oposição. Parlamentares aliados do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) saíram em defesa do Planalto, após o governador Cláudio Castro (PL) afirmar ter solicitado auxílio à União.
Por outro lado, nomes da direita cobram a convocação do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, para explicar a suposta falta de cooperação na ação que deixou quatro policiais mortos.
“Infelizmente, o que está acontecendo hoje no Rio de Janeiro é o retrato da segurança pública no Brasil. O governo federal está pouco se lixando com isso. O próprio governador disse que pediu ajuda ao governo federal e o governo Lula negou, não atendeu. E aqui fica a pergunta: qual a intenção do governo Lula em não atender à segurança pública do Rio de Janeiro?”, disse o deputado coronel Assis (União-MT).
O parlamentar afirmou que a convocação do ministro da Justiça deve ser analisada nas próximas sessões da Comissão de Segurança Pública.
O líder da oposição na Câmara, deputado Luciano Zucco (PL-RS), reforçou as acusações contra o governo federal e disse que o presidente Lula teria negado apoio ao governo fluminense em três ocasiões. Segundo ele, a ausência de auxílio das Forças Armadas agravou a situação enfrentada pelas forças estaduais de segurança.
“Mesmo com pedido formal do governador Cláudio Castro, o governo Lula negou por três vezes o apoio das Forças Armadas. A tropa foi sozinha — enfrentando drones com bombas, barricadas e um arsenal de guerra em poder do crime organizado. Enquanto isso, o presidente da República prefere dizer que traficante é vítima de usuário”, criticou.
As críticas foram rebatidas por parlamentares governistas. O deputado Reimont Santa Bárbara (PT-RJ), vice-líder do governo na Câmara, acusou o governador Cláudio Castro de mentir sobre os pedidos de ajuda federal e de tentar transformar a operação em palanque político.
“O governador mente. Ele não fez pedido ao governo federal e comemora. O que ele está fazendo, na verdade, é uma grande jogada, uma tentativa de jogada eleitoral”, afirmou o petista. Castro negou ter qualquer objetivo eleitoral com a operação.
Já o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (RJ), alegou que o governador Cláudio Castro “insiste em um modelo falido, que ao invés de privilegiar inteligência e integração, prefere operações de guerra, utilizadas há décadas no Rio de Janeiro. O governador tem uma postura vergonhosa”.
Além da suposta falta de apoio ao governo fluminense, a crise foi amplificada após a recente fala de Lula durante viagem à Indonésia, quando o presidente afirmou que o combate ao tráfico de drogas passa também pela responsabilização dos usuários de entorpecentes. A declaração — na qual o petista sugeriu que “o usuário é responsável pelo traficante” — gerou forte reação no meio político.
No Senado, a reação também veio de aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) compartilhou nas redes sociais um vídeo que mostra traficantes do Comando Vermelho utilizando drones para lançar explosivos contra policiais durante a ofensiva no Rio. “Nada me surpreende depois que Lula disse que os traficantes são vítimas dos usuários”, escreveu o senador.
Já o vice-líder da oposição, deputado Ubiratan Sanderson (PL-RS), atribuiu o agravamento da violência no país à “omissão do governo federal” e à “mensagem de impunidade” transmitida pelo Planalto.
Segundo Luan Sperandio, analista político e diretor de operações do Ranking dos Políticos, ja começa uma guerra de argumentos.
“O eventual impacto sobre a popularidade do presidente Lula dependerá, em grande medida, da percepção pública sobre o sucesso ou fracasso da operação no Rio de Janeiro. Porém, a declaração do governador Cláudio Castro de que ‘o Rio está sozinho’ é particularmente forte e simbólica, e transmite a ideia de abandono em uma das áreas que mais preocupam os brasileiros: a segurança pública. O governo federal, até aqui, não tem apresentado grandes ações concretas nesse campo”, afirmou
Tensão continua alta no Rio de Janeiro
A operação de terça-feira coincidiu como uma série de tentativas da polícia de tentar impedir o Comando Vermelho de expandir seu domínio territorial. Mas dessa vez o impacto da ação afetou diversas partes da cidade, com fechamento de avenidas, suspensões no metrô e em atividades corriqueiras.
“Aqui no Saara todo mundo baixou as portas de tarde”, disse o ex-policial e instrutor de artes marciais Mauro Salgueiro, se referindo à principal área de comércio popular do Rio. “A operação não foi perto daqui mas uma emissora de TV começou a espalhar uma histeria coletiva e até os entregadores pararam de rodar. Eu acho que os confrontos vão continuar nos próximos dias”, afirmou.
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