No relatório do projeto de lei do governo para combater o crime organizado, o deputado Guilherme Derrite (PP-SP) incluiu uma nova regra que permitirá a juízes destinar dinheiro das facções para a segurança pública dos estados. A proposta, não prevista no texto original enviado pelo Executivo, reacende uma disputa histórica e pouco resolvida entre União e estados: quem deve controlar os recursos extraídos da criminalidade?
O substitutivo apresentado por Derrite, pronto para ser votado no plenário da Câmara, diz que juízes podem enviar os valores obtidos com a venda de bens, direitos e participações societárias das organizações criminosas diretamente aos Fundos Estaduais e Distrital de Segurança Pública. Se não houver fundo constituído, o dinheiro poderá ser repassado à Secretaria de Segurança Pública do estado onde corre a investigação.
“O juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, determinará as medidas patrimoniais e restritivas destinadas à desarticulação financeira definitiva da organização criminosa, paramilitar ou milícia privada”, diz trecho do projeto incluído por Derrite.
O texto especifica que isso inclui “a liquidação judicial definitiva dos bens, direitos e participações societárias, sob supervisão de administrador nomeado pelo juízo, com destinação dos recursos ao Fundo Estadual ou Distrital de Segurança Pública”.
Além disso, o relatório autoriza que os recursos confiscados possam ser usados provisoriamente para financiar ações diretas contra o crime. “Os bens e valores perdidos poderão ser utilizados provisoriamente pelos órgãos de segurança pública para reaparelhamento policial, capacitação e operações especiais, mediante autorização do juiz da execução”, acrescenta o documento.
A mudança de abordagem tem implicações práticas, políticas e institucionais. Na prática, cria um caminho legal para que os estados se beneficiem diretamente dos frutos da repressão às facções, inclusive para custear suas próprias operações policiais — uma forma de driblar a centralização orçamentária da União.
A proposta vai ao encontro da posição que Derrite já havia externado em debates anteriores sobre segurança pública. Em outubro, o deputado criticou a chamada PEC da Segurança Pública, também apresentada pelo governo, por “engessar o acesso de estados a recursos” e defendeu mais autonomia e instrumentos para os governos estaduais no enfrentamento ao crime.
“Os estados precisam de mais instrumentos e mais verbas para combater o crime organizado, que se ramifica nos territórios”, disse em audiência na Câmara dos Deputados.
Deputados defendem que dinheiro de facções fique nos estados
O presidente da Comissão de Segurança Pública da Câmara, Paulo Bilynskyj (PL-SP), afirmou que o projeto relatado por Derrite corrige uma falha histórica na distribuição dos recursos apreendidos de facções criminosas.
“O Fundo Nacional de Segurança Pública é um grande problema — ele é de difícil utilização pelos estados. É óbvio que o dinheiro apreendido pelas polícias estaduais tem que ficar nos estados que fizeram o trabalho de apreensão. Não faz o menor sentido você apreender dinheiro do crime organizado em São Paulo e usar para equipar a polícia do Maranhão. Quem está fazendo o trabalho, quem está alcançando o resultado, quem tem que usufruir desse sucesso é a polícia que fez o trabalho para confiscar esse dinheiro”, disse o deputado paulista.
Na mesma linha, o deputado Alberto Fraga (PL-DF) afirmou que a proposta deve estimular os governos estaduais no enfrentamento ao crime organizado.
“Os estados que tiverem o crime investigado terão que atuar e podem muito bem receber esses valores apreendidos. Esse benefício atua como uma forma de motivar o trabalho dos estados. Acho que vai ajudar muito no combate ao crime organizado”, declarou.
Derrite adota lógica das leis antiterror para destinar bens do crime aos estados
Ao tratar as facções criminosas com o mesmo peso jurídico do terrorismo, o relatório do deputado Guilherme Derrite (PP-SP) aplica ao crime organizado uma lógica já prevista em legislações antiterror: enfraquecer as organizações por meio da asfixia financeira e redistribuir o patrimônio obtido com atividades ilícitas em favor do Estado.
Mais do que isso, em um trecho de sua versão original do governo, que foi mantida por Derrite, o projeto adota uma medida que altera a lógica tradicional do processo penal: a inversão do ônus da prova sobre o patrimônio. Em investigações criminais comuns, cabe ao Ministério Público provar que determinado bem foi adquirido com dinheiro do crime para que o Estado possa vendê-lo e usar o dinheiro para finalidades públicas. No texto relatado por Derrite, a lógica se inverte: é o investigado quem terá que comprovar que o bem tem origem lícita, caso queira reavê-lo.
“Decretada qualquer uma das medidas previstas neste artigo, o investigado ou acusado poderá, no prazo de dez dias, contado da data da intimação, apresentar provas ou requerer a produção delas, para comprovar a origem lícita do bem, direito ou valor apreendido”, determina o §5º do artigo 2º-D do substitutivo.
Essa inversão segue o modelo já usado na Lei Antiterrorismo (Lei 13.260/2016), que permite que juízes decretem o bloqueio de bens por iniciativa própria, sem necessidade de provocação do Ministério Público, e que impõe ao investigado o dever de provar a origem e também a destinação lícita dos recursos.
Com isso, o relatório busca não apenas endurecer a repressão penal, mas também dificultar a capacidade financeira das facções de continuarem operando — e, ao mesmo tempo, reforçar os estados com os próprios recursos confiscados do crime. Trata-se de uma estratégia de ataque direto à estrutura econômica das organizações, com base em precedentes legais já existentes no combate ao terrorismo.
Delegado vê proposta como positiva, mas defende controle rigoroso sobre uso dos recursos
O delegado André Santos Pereira, presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP), avalia que o projeto apresentado pelo deputado Guilherme Derrite traz um ponto positivo ao permitir que valores obtidos com a liquidação de bens de organizações criminosas sejam destinados aos Fundos Estaduais e Distrital de Segurança Pública.
Segundo ele, a medida pode “servir para o reaparelhamento e a capacitação das polícias”, sobretudo em um cenário de “financiamento insuficiente e falta de recursos” na segurança pública.
Pereira pondera, porém, que o uso desses valores deve ser acompanhado de regulamentação adequada e controle judicial rigoroso, a fim de garantir que o dinheiro seja aplicado em investigações qualificadas contra o crime organizado — e não em atividades rotineiras, como patrulhamento ou registro de ocorrências.
Ele defende o fortalecimento institucional das polícias civis, com mecanismos que evitem ingerência política nas investigações, como a escolha de delegados-gerais por lista tríplice e a exigência de aval das assembleias legislativas para eventuais exonerações. Também cita a valorização e qualificação dos profissionais que atuam em investigações complexas como caminho para melhorar o combate ao crime organizado.
“Uma coisa é certa: sem investimento nos profissionais, o crime estará sempre um passo à frente do Estado”, conclui.
Como funciona o financiamento da segurança pública do país
Criado para apoiar políticas de segurança pública e prevenção à violência em todo o Brasil, o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) é hoje o principal instrumento de financiamento do setor na esfera federal. Seus recursos são usados para reequipar polícias, financiar programas de prevenção, estruturar sistemas de inteligência e modernizar a atuação das forças estaduais e municipais, como as guardas civis.
A gestão do fundo cabe ao Conselho Gestor do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), com base em diretrizes do Plano Nacional de Segurança.
O modelo de funcionamento do Fundo Nacional de Segurança Pública é baseado na lógica do repasse “fundo a fundo”: os recursos federais são transferidos diretamente para os fundos estaduais, distrital e, desde 2024, também para municípios com guarda municipal. Por lei, pelo menos 50% da arrecadação com loterias federais deve ser automaticamente transferida a esses entes.
Para receber, no entanto, os estados e municípios precisam atender a uma série de requisitos legais — como ter conselho de segurança, plano estadual ou municipal de segurança, integração com sistemas nacionais e mecanismos de prestação de contas.
Os valores só podem ser usados em ações estratégicas: 80% para o enfrentamento ao crime organizado e redução das mortes violentas, 10% para prevenção da violência contra a mulher e 10% para a melhoria da qualidade de vida dos profissionais de segurança pública. É vedado o uso dos recursos para pagamento de pessoal ou custeio administrativo.
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