As divergências políticas entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente americano Donald Trump levaram ao cancelamento de exercícios militares conjuntos e colocam em risco o comércio de armas e equipamentos de defesa – um setor no qual o Brasil é dependente dos Estados Unidos. O aumento da pressão de Trump sobre o tráfico de drogas na América Latina agravou ainda mais o cenário e militares das Forças Armadas sentem grande pressão geopolítica enquanto tentam negociar a compra de helicópteros, munições e peças de reposição.
Os Estados Unidos cancelaram uma conferência que ocorreria com membros da Força Aérea do Brasil (FAB) no fim de julho, na mesma época em que anunciaram a elevação das tarifas comerciais para 50%. No mês seguinte, o Brasil anunciou a suspensão da Operação Formosa, um exercício militar que o país faz desde 1988 e nos últimos anos tem contado com a participação de militares americanos.
Além disso, o CORE (sigla em inglês de operação combinada e exercício de rotação de tropas), uma manobra militar anual integrada que estava marcada para novembro, não deve acontecer. Ela havia sido criada em 2019 por influência do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) junto aos Estados Unidos.
O governo americano já havia enviado uma delegação menor para preparar o exercício, alegando restrições financeiras, e o governo do Brasil justificou a suspensão das manobras como contenção de despesas. No caso da Operação Formosa, o maior custo, do deslocamento de 1.600 fuzileiros e 60 veículos do Rio de Janeiro para Goiás, foi mantido, pois as tropas participaram de outro exercício sem os americanos, a Operação Atlas. Assim, de acordo com analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, a motivação do cancelamento foi mais política do que financeira.
Treinamentos desse tipo são praxe entre países aliados e, geralmente, não são interrompidos, o que evidencia o peso político da decisão. Para Adriano Gianturco, cientista político e professor do IBMEC, a fragilização da relação entre os países influenciou a suspensão. “Exercícios desse tipo costumam ser automáticos, mantidos por décadas, justamente porque representam continuidade de compromissos e tratados”, apontou Gianturco.
As suspensões ocorreram em um momento em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva viu sua popularidade aumentar, de acordo com pesquisas de opinião, por ter se colocado como defensor da soberania brasileira frente aos Estados Unidos. Ele teria dificuldade de explicar politicamente como suas Forças Armadas treinam com um país “hostil” ao Brasil.
Segundo analistas e membros da oposição, Lula teria optado por não abandonar o discurso do combate ao “inimigo externo” americano para continuar se aproveitando da alta de popularidade, especialmente em um momento em que o governo Trump intensifica ataques contra barcos da Venezuela e da Colômbia no mar do Caribe e no Pacífico por suspeita de transporte de drogas.
Para defender sua posição, Lula chegou ao ponto de afirmar que “os usuários [de drogas] são responsáveis pelos traficantes, que são vítimas dos usuários também”, mas depois decidiu se retratar. Na quinta-feira, ele também havia feito novos ataques ao dólar como moeda de comércio global.
Os Estados Unidos aumentaram ainda mais a pressão sobre a Venezuela e a Colômbia nesta sexta-feira (24) ao enviar à região o grupo de combate do porta-aviões Gerald R. Ford, o maior do mundo, e anunciar sanções ao presidente da Colômbia, Gustavo Petro, e membros de sua família e seu gabinete.
Segundo analistas ouvidos pela reportagem, a decisão de Lula de manter o atrito com Trump eleva o risco de exclusão do Brasil do programa norte-americano de vendas internacionais de equipamentos militares (Foreign Military Sales, em inglês) em um cenário em que as Forças Armadas são totalmente dependentes de tecnologia e peças de reposição americanas.
Nesta semana, o Ministério da Defesa anunciou a intenção de comprar 11 helicópteros do exército dos EUA pelo valor de US$ 229,9 milhões – o equivalente a R$ 1,2 bilhão. A compra pode ser afetada por uma eventual retaliação americana e pode deflagrar uma crise ainda maior de suprimento para as Forças Armadas. O desfecho pode estar nas mãos de Lula em uma reunião com Trump, que pode ocorrer no próximo domingo, em um encontro diplomático na Malásia.
Disputa com China pode influenciar venda de equipamentos americanos
Segundo o doutor em Filosofia pela PUCRS e especialista em conflitos internacionais, Cezar Roedel, o anúncio da intenção concreta de compra de helicópteros Black Hawk, dispensando licitação com concorrência de fornecedores de outros países, pode ser entendido com uma demonstração de boa vontade das Forças Armadas em relação aos EUA, apesar da política de Lula.
Roedel afirma acreditar que Trump não deva colocar empecilhos à venda. “É muito mais interessante para os EUA venderem esses helicópteros, do que eventualmente o Brasil comprar da China, por exemplo”, afirmou.
Os helicópteros Black Hawk são vistos como muito importantes no contexto de defesa da Amazônia e da costa brasileira, por terem estrutura para voar longas distâncias em locais onde não é possível fazer pousos de emergência. Sua compra vinha sendo negociada desde o governo Bolsonaro, que usou sua influência com Trump (que exercia seu primeiro mandato) para que o Brasil obtivesse o status de “aliado extra-OTAN”.
O status foi obtido em 2019 e garante prioridade no acesso a tecnologias sensíveis. Os helicópteros Black Hawk não poderiam ser vendidos sem esse acordo, por exemplo. Ele não faz com que o Brasil entre na rede de defesa mútua das democracias ocidentais, mas é considerado um diferencial estratégico.
A reportagem apurou que há um temor entre militares brasileiros de que a permanência ou não do Brasil como aliado extra-OTAN possa ser usada como fator de pressão de Washington contra o governo Lula.
Por um lado, os EUA não desejariam que o Brasil passasse a comprar armas da China, do Irã ou de outro fornecedor. Mas, por outro, Washington poderia ameaçar suspender a venda de equipamentos militares e peças de reposição para o Brasil. Esse cenário teria o potencial de sucatear a maioria dos equipamentos de defesa brasileiros (aviões, navios, blindados, etc) em cerca de três anos, segundo uma fonte ligada à cúpula do Exército que pediu para não ter o nome revelado por tratar de assunto sensível.
Defesa do Brasil depende de compras externas
Segundo Eduardo Siqueira Brick, professor aposentado da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do Núcleo de Estudos de Defesa, Inovação, Capacitação e Competitividade Industrial (UFF Defesa), o Brasil é hoje totalmente dependente de outros países por não ter desenvolvido sua base industrial de Defesa, ou seja, a capacidade de produzir armas e equipamentos militares internamente. “Nós temos ficção de capacidade da defesa”, afirmou.
Brick explica que a capacidade de defesa de um país vai muito além dos equipamentos que as Forças Armadas possuem e o treinamento de seus integrantes, ou seja, sua capacidade operacional de combate. Ela depende em igual medida de uma capacidade logística de defesa, que abrange a base industrial e tecnológica para conceber e produzir armamentos e insumos e a capacidade de produção de munições, granadas e mísseis para suprir os combatentes durante uma guerra.
Para o pesquisador, o Brasil tem um sistema “completamente desestruturado e disfuncional” porque não possui capacidade logística de defesa. Em outras palavras, tem que comprar armas e também munições do exterior por não ser capaz de produzi-las. Segundo ele, nem a Estratégia Nacional de Defesa do governo prevê essa capacidade hoje em dia. Por isso, as Forças Armadas são totalmente dependentes dos Estados Unidos e seus aliados do Ocidente.
“O que as Forças Armadas têm hoje em dia são produtos de defesa fornecidos por outros países ou produtos de defesa que dependem quase 100% de tecnologias que esses países controlam”, disse Brick.
Para reverter esse quadro, ele aponta que seria necessário que um órgão governamental responsável e centralizado se ocupasse da saúde da base industrial estratégica de defesa e de investir em tecnologias críticas e desenvolver novos produtos, como ocorre em outros países. “Nós não temos liderança política que queira conduzir o Brasil para desenvolver o país economicamente e industrialmente em sua capacidade militar tecnológica. Ninguém fala nisso”, avalia Brick.
O Brasil, segundo ele, carece dessa base estratégica, dependendo quase que totalmente de países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e de Israel para seus meios de defesa, o que gera uma vulnerabilidade significativa.
Uma eventual exclusão do programa de venda de armamentos americanos significaria que o Brasil teria como alternativa o mercado Europeu, especialmente a França, ou a opção de criar parcerias com países como a China ou Irã.
A diversificação, no entanto, não elimina a dependência de sistemas já adquiridos junto aos EUA e pode até impedir a compra de sistemas europeus que tenham tecnologia americana.
“Os EUA continuam sendo a maior potência militar do mundo, com orçamento e arsenal incomparáveis. Além disso, seus contratos de venda de armamentos incluem mecanismos de controle que impedem que países compradores repassem equipamentos sem autorização. Isso mostra a dependência estrutural em relação a Washington”, destaca o cientista político e professor de Relações Internacionais Adriano Gianturco.
Crise com EUA está envolta em pressões políticas e diplomáticas
Para analistas, a crise militar é apenas a face mais visível de uma tensão política maior. O governo Lula busca reforçar sua agenda internacional em fóruns como o Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, Egito, Etiópia, Indonésia, Irã e Emirados Árabes Unidos), mas esse movimento tem gerado atritos com Washington, especialmente na gestão de Donald Trump.
Lula tem incorporado pautas de membros mais fortes do Brics, como China e Rússia, e defendido agendas consideradas antiamericanas pela Casa Branca. Entre elas estão a criação de meios de pagamento que possibilitem o comércio internacional sem o intermédio do dólar (por meio de transações e moedas nacionais) ou que diminuam a abrangência do sistema financeiro americano (como o Pix, que não passa pelo sistema de cartões de crédito de operadoras americanas). Segundo analistas, essa postura de confronto é uma das explicações das sanções comerciais impostas ao Brasil por Trump.
“São atitudes desconexas, tendo em vista a nossa total dependência estratégica e de defesa dos Estados Unidos”, afirma o pesquisador Eduardo Siqueira Brick.
“Não faz sentido a sua defesa depender 100% de um determinado bloco e na visão de mundo você se colocar como sendo de outro bloco, que é antagônico desse do qual você é totalmente dependente. Para fazer isso, você tinha que investir na sua própria capacidade, o que o Brasil não faz”, disse o pesquisador.
Sobre esse aspecto, Gianturco lembra que “os EUA vêm sinalizando esse descontentamento desde antes, com notas oficiais e até com manifestações públicas, como no caso do navio iraniano que atracou no Brasil”.
Gianturco reforça que, se o Brasil insistir em aprofundar vínculos militares com regimes autoritários, “poderá perder espaço junto às democracias ocidentais, que, apesar de imperfeitas, ainda são muito mais estáveis e previsíveis do que autocracias como a russa ou a chinesa”.
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