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Código Civil de Pacheco deveria ser arquivado, dizem juristas

A melhor solução para o projeto do novo Código Civil que tramita no Senado é arquivá-lo, afirmam juristas consultados pela Gazeta do Povo. Para eles, o documento de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) é tecnicamente tosco, tem contradições internas, é inoportuno para o atual momento do país e dificilmente poderá ser corrigido.

“O projeto apresenta vícios estruturais e conceituais insanáveis, razão pela qual a solução mais adequada é o seu arquivamento, e não a tentativa de emendas ou ajustes pontuais”, afirma Maristela Basso, professora livre-docente de Direito Internacional da Universidade de São Paulo (USP).

“A única solução seria realmente o arquivamento”, diz a civilista Judith Martins-Costa, livre-docente e doutora em Direito pela USP. “Os equívocos neste projeto são transversais. Não é questão de tirar uma ou outra regra que esteja mal formulada. Há implicações de regras que estão na parte geral que vão afetar, por exemplo, o Direito Digital. Há equívocos na parte geral dos contratos que se esparramam por todos os tipos contratuais”, alerta.

Segundo Martins-Costa, há também vários pontos em que o documento é autocontraditório, o que revela . “Foi feito muito rapidamente por muitas pessoas e, com isso, há muitas regras claramente contraditórias. Portanto, não adiantaria tirar uma, porque a contradição pode permanecer com outra. Não vejo outra solução senão o arquivamento”, critica.

Para ela, o projeto tem problemas técnicos “gravíssimos”. “Que fique ressalvado que toda a crítica que eu faço jamais é aos autores deste projeto. Tenho certeza de que todo mundo se empenhou com espírito público. A minha crítica é ao texto, sempre ao texto. É crítica, portanto, objetiva e não subjetiva. Dito isso, me parece que o projeto tem muitas deficiências técnicas”, diz.

A jurista cita o artigo 91, sobre patrimônio, como um exemplo da baixa qualidade técnica do documento (que pode ser lido ao final desta reportagem). “Ele define patrimônio de uma forma que eu nunca vi em lugar nenhum do mundo: diz que o patrimônio consiste em relações jurídicas ‘experimentadas por uma ou mais pessoas’. É uma linguagem realmente muito curiosa, porque pessoas jurídicas titulam relações jurídicas, mas elas não ‘experimentam’ relações jurídicas como se experimentassem uma roupa, uma receita culinária. E termina dizendo assim: ‘conforme assim se tenha estabelecido’. Quem estabeleceu o quê?”, comenta. “São problemas técnicos graves, gravíssimos, que realmente contaminam, porque são conceitos centrais.”

Para Venceslau Tavares Costa Filho, professor de Direito Civil da Universidade de Pernambuco, há “tantas regras que precisam ser revistas para readequar o projeto que seria melhor refazer o projeto do zero”.

“O Código Civil precisa partir de uma concepção sistemática. Isto significa que há uma conexão entre as regras constantes dos diversos livros do Código Civil. As regras sobre contrato de doação que estão no livro dos contratos vão repercutir no Direito das Sucessões, por exemplo. Neste sentido, a alteração de partes relevantes da legislação pode inviabilizar um projeto de Código Civil que não considera tais reformas. Apenas para ficar nas leis aprovadas recentemente, veja que o PL 4/2025 [projeto do Código Civil] não considerou as novas normas do Marco Legal dos Seguros, do Estatuto Digital da Criança e do Adolescente e da Lei do Cadastro de Pets”, observa Tavares.

A advogada Katia Magalhães, especialista em responsabilidade civil, concorda que tentar ajustar o projeto do Código Civil de Pacheco não é uma boa saída.

“Não acho que valha corrigir, sob pena de chegarmos a um Frankenstein”, afirma. Para ela, a falta de consistência entre diferentes partes do documento tende a transferir aos juízes a responsabilidade de legislar.

“Quando você jogar a lei na mão de quem interpreta, que é o juiz, até juízes de boa fé vão ficar perplexos. Vão dizer: ‘Como é que eu vou agir aqui?’ As pessoas vão ficar confusas”, lamenta. “A lei é o quê? A lei é um comando abstrato, para pessoas que o legislador não conhece, para todo mundo, para a generalidade da população. Neste novo projeto de Código, o legislador se exime de legislar e joga a lei para a mão do juiz, para ele decidir como bem entender. É um Código que fornece conceitos vagos, muito perigosos, abertos. Seria a oficialização da juristocracia.”

A advogada Andrea Hoffmann Formiga, presidente do Instituto Isabel, ONG voltada à defesa dos valores fundamentais, ressalta que a própria sociedade não demandou um novo Código Civil.

“Alterações pontuais necessárias para adequação de certos temas podem ser feitas via projetos de lei específicos. Caso haja força política para passar, grandes alterações serão necessárias. Mas não vemos a sociedade buscando essa alteração”, diz.

Tavares também vê na criação de leis específicas uma solução melhor. “Vejam o que foi feito em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente: em vez de reformá-lo integralmente e colocar em questionamento princípios que seguem válidos, o legislador encontrou uma saída inteligente na aprovação de uma lei especial. Isto é recomendável para a regulação de temas novos: faz-se a lei especial no sentido de um experimento legislativo, preservando-se as regras e princípios gerais do Código. Isso é algo que poderia ser feito em relação ao Direito Digital, por exemplo. Seria interessante pensar em uma lei específica para isto, em vez de introduzir estas regras diretamente no Código Civil”, afirma.

Se aprovado, Código Civil de Pacheco provocará abalo na certeza do Direito, diz jurista

Para Martins-Costa “há dois livros que são uma verdadeira unanimidade” no sentido negativo: o de regulação da responsabilidade civil e o livro do Direito Digital. “Não há quem não se preocupe com eles”, afirma. “O tal livro do Direito Digital é uma excrescência, no sentido de que isso não é matéria para um Código. Pode ser matéria para uma lei, como aliás já há várias leis, algumas já aprovadas, outras em tramitação, que tratam, por exemplo, de relações com inteligência artificial. Mas não é matéria para o código.”

Segundo a jurista, o Código Civil “trata daquilo que é permanente na existência humana, dos efeitos do nascimento, dos efeitos da morte, dos efeitos da construção de uma família, das relações patrimoniais que as pessoas vão tecendo ao longo da vida delas”. “Não pode tratar de algo que é absolutamente passageiro, até porque o processo de formação, elaboração e mudança de um Código é muito mais lento do que uma lei ordinária que tratasse especificamente daquele projeto”, observa.

Para ela, os elaboradores do projeto de Pacheco foram bem menos humildes que o do atual Código Civil, que vigora desde 2002.

“Os autores [do Código de 2002] diziam o seguinte: ‘Nós deixamos aqui só aquilo que é permanente. Aquilo que é sujeito a uma rápida alteração, o que sofre mais diretamente os efeitos das mudanças sociais, tem que ficar para leis que venham complementar o Código naquelas matérias mais suscetíveis de mudanças.’ E isso já foi pensado assim. Só que, infelizmente, agora o que nós vemos é exatamente a tendência inversa. O Código de 2002 tinha um espírito modesto, no sentido de dizer: ‘Vou cuidar do que eu posso cuidar, que é aquilo que tem permanência’. O novo projeto, não: ele quer abarcar tudo”, lamenta.

Martins-Costa rechaça de forma veemente a ideia de que o projeto de Pacheco seja mera “atualização” do Código Civil, como vêm afirmando seus elaboradores. “Absolutamente não é uma atualização. E isso eu não digo só pela quantidade de alterações, que é impressionante – praticamente em torno de 60% do Código de 2002 foi alterado –, mas também pela técnica diferente, pelo arsenal conceitual completamente diferente”, explica.

Na visão da jurista, a eventual aprovação do Código como está traria três efeitos negativos centrais: primeiro, imporia um alto custo econômico para cidadãos e empresas, já que cada ambiguidade ou contradição abriria espaço para litígios, obrigando a contratação de advogados, a renegociação de contratos e um consequente aumento dos custos de transações; segundo, provocaria uma onda de judicialização ainda maior do que a existente hoje, por causa das contradições internas e dos conceitos vagos; e, por fim, abalaria a confiança social na própria estabilidade das leis, transformando o contrato em algo dependente de decisão judicial e enfraquecendo a segurança jurídica.

“Nesta vida que já é tão incerta e em que nós podemos confiar em tão poucas coisas, é importante saber que existe uma lei, que ela é estável, que ela vai ser cumprida e aplicada de maneira mais ou menos uniforme para situações uniformes, para situações similares”, comenta Martins-Costa. “A aprovação deste projeto provocaria um abalo neste valor social, que é o da certeza do Direito.”

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