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Caso Tagliaferro deixa recado de censura a delatores internos

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A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) da última quinta-feira (13) de tornar réu Eduardo Tagliaferro, delator da Vaza Toga, abre um precedente para desencorajar futuros denunciantes de abusos e irregularidades da elite estatal. É o que pensam juristas consultados pela Gazeta do Povo.

Em diferentes democracias, ao longo das últimas décadas, algumas das maiores revelações sobre corrupção estatal partiram justamente de indivíduos posicionados dentro das estruturas de poder e dispostos a denunciar atos ilícitos de agentes públicos. Chamados de “whistleblowers” (expressão que, em inglês, significa literalmente “sopradores do apito”), essas pessoas são, com frequência, a única saída para responsabilizar políticos, magistrados e autoridades diversas.

Ex-assessor de enfrentamento à desinformação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Tagliaferro divulgou mensagens internas que mostravam práticas incompatíveis com o devido processo legal, como monitoramento de cidadãos com base em postagens de redes sociais, investigações determinadas informalmente e diligências paralelas aos autos – todas atribuídas ao ministro Alexandre de Moraes, que, em 2022, data das mensagens, presidia a Corte eleitoral.

O conteúdo vazado é, até o momento, a maior evidência documental de que Moraes atuou para escolher alvos a dedo nos inquéritos dos quais é relator. As ações tinham como alvo prioritário políticos e influenciadores de direita.

Ao transformar o denunciante em réu, o STF sinaliza que iniciativas como a de Tagliaferro poderão resultar, a partir de agora, em processo criminal. Para Rodrigo Chemim, doutor em Direito do Estado e professor de Processo Penal da Universidade Positivo, o caso “projeta uma sombra sobre a disposição dos servidores de agir em favor da integridade do Estado, justamente por transmitir que o exercício legítimo de um direito, e no caso dos agentes públicos até mesmo de um dever, pode gerar consequências pessoais indesejadas”.

“Quando um servidor que torna públicas informações sensíveis passa a responder judicialmente por atos relacionados à sua iniciativa, o sinal enviado aos demais agentes públicos é preocupante”, afirma.

Pelos crimes dos quais é acusado, o ex-assessor poderá ser condenado a mais de duas décadas de prisão. Tagliaferro responde por violação de sigilo funcional, coação no curso do processo, obstrução de investigação e tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. As acusações foram acolhidas por unanimidade na Primeira Turma. Além de se colocar como vítima em um caso em que seria alvo potencial de uma denúncia, Moraes julgará seu próprio denunciante – e ainda poderá ser relator do caso.

“Essas informações [reveladas por Tagliaferro] são de grande interesse para a sociedade e para as instituições públicas. Devem ser prestadas em ambiente receptivo ao esclarecimento da verdade. Portanto, a admissão de que o ministro que pode ser afetado pelas declarações pode presidir um processo voltado a sancionar o informante toca às raias do absurdo. Além de enfraquecer a autoridade da Corte, desmoralizar o Judiciário e zombar da inteligência de qualquer estudioso do Direito”, afirma Luiz Guilherme Marinoni, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pós-doutor em Direito na Universidade Estatal de Milão e na Columbia Law School.

Para Chemim, o desincentivo ao whistleblower instala no ambiente público brasileiro uma espécie de “omertà” – a lei do silêncio das máfias italianas. “Quando o próprio sistema de Justiça passa a desestimular ou punir quem colabora com as apurações, o efeito é profundamente negativo. Essa postura não apenas abala a confiança na capacidade do Estado de se autorregular, mas também cria um ambiente de medo de represálias e de desconfiança em relação aos superiores hierárquicos que detêm poder para retaliar”, diz. “O controle social interno se afrouxa, e esse clima de silêncio favorece a continuidade de práticas ilícitas e impede que irregularidades venham à tona.”

O cerco contra a Vaza Toga ainda pode ser ampliado a outros nomes envolvidos na divulgação do caso. Os jornalistas David Ágape e Eli Vieira, que ajudaram a trazer os fatos a público, são agora alvo de uma petição criminal movida diretamente no STF, que requer que eles sejam investigados por diversos crimes, como organização criminosa e abolição violenta do Estado Democrático de Direito.

Brasil tem lei destinada a incentivar e proteger reportantes de denúncias

Chemim recorda que o Brasil tem uma lei (nº 13.608) de incentivo a reportantes de denúncias, sancionada em 2018, que inclui crimes contra a administração pública. Segundo a norma, quando a informação prestada pelo denunciante possibilita a recuperação de alguma quantia ou produto, admite-se inclusive que ele receba uma recompensa de até 5% do valor recuperado.

O caso de Tagliaferro, pondera o jurista, não se enquadraria no modelo formal de proteção ao denunciante previsto nessa lei, porque não foi feito pelos canais institucionais de ouvidoria. “No entanto, a própria lei afirma que cabe ao Estado ‘assegurar a qualquer pessoa o direito de relatar informações sobre crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público’. Ou seja, o direito de comunicar irregularidades é universal e não depende exclusivamente da utilização dos canais internos”, destaca.

A comunicação, segundo o jurista, “pode ocorrer por outras vias legítimas, inclusive pela imprensa, especialmente quando o denunciante avalia que esse é o meio mais eficaz para tornar a informação pública ou evitar barreiras institucionais que poderiam impedir a apuração”.

“E, no caso de servidores públicos, esse direito se soma a um dever ético e jurídico de proteção à coisa pública, dado que se eles presenciam irregularidades devem agir para impedir sua continuidade, ainda que a forma de revelação não siga o rito típico do whistleblowing previsto em lei”, conclui Chemim.

Whistleblowers como Tagliaferro foram fundamentais para desvendar casos históricos de corrupção

A liberdade de expressão de potenciais delatores internos é historicamente uma condição para desvendar casos de corrupção que, de outro modo, permaneceriam ocultos por décadas.

Em diversas democracias, os episódios mais emblemáticos de responsabilização de membros do Estado começaram com alguém que decidiu romper o silêncio e enfrentar estruturas de poder. Sem esse tipo de gesto, práticas abusivas de autoridades de alto escalão dificilmente chegariam ao conhecimento público.

A própria história do Brasil recente tem exemplos disso. Em 1992, a denúncia de Pedro Collor foi decisiva para derrubar seu irmão Fernando Collor, primeiro presidente eleito após a redemocratização. Ao revelar o esquema de corrupção comandado por Paulo César Farias em benefício do ex-presidente, ele acionou uma sequência de eventos que envolveu CPI, cobertura jornalística intensa e mobilização social de grandes proporções.

Em 2005, foi um delator interno quem revelou um dos maiores esquemas de corrupção do país. Roberto Jefferson, então deputado federal, trouxe a público o esquema do Mensalão: pagamentos mensais a parlamentares em troca de apoio ao governo Lula. A denúncia abalou o Congresso, deu origem a CPIs e resultou no julgamento histórico da Ação Penal 470 pelo STF, com condenações que atingiram políticos de diversos partidos e figuras centrais do governo.

Foi também um whistleblower que expôs práticas ilícitas dentro do Poder Judiciário no final do século passado. Em 1999, o esquema de desvio de verbas na construção do Fórum Trabalhista de São Paulo, comandado pelo juiz Nicolau dos Santos Neto, o “Lalau”, foi revelado por Marco Aurélio Gil de Oliveira, seu ex-genro. O caso envolvia R$ 169 milhões em recursos desviados e, na época, levou à criação de uma CPI do Judiciário.

Nos Estados Unidos, no início da década de 1970, o escândalo de Watergate só veio à tona graças ao informante conhecido como Garganta Profunda – depois revelado como Mark Felt, vice-diretor do FBI. As informações que ele repassou ao jornal The Washington Post levaram à queda do então presidente Richard Nixon e se tornaram um símbolo da importância de garantir liberdade de expressão a delatores internos para a saúde das democracias.

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