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Bolívia retoma relações com EUA em meio a grave crise

Após quase duas décadas de alinhamento com a retórica anti-ocidental, a Bolívia, sob a liderança do recém-empossado presidente de centro-direita Rodrigo Paz, sinaliza uma mudança de rumo. A retomada das relações com os EUA, ausentes desde 2008, ocorre em meio a uma profunda crise econômica: inflação de 25%, escassez de dólares e queda de 80% nas reservas. O novo governo vê a reaproximação com Washington como passo crucial para atrair investimentos, buscar ajuda financeira e, acima de tudo, assegurar o futuro estratégico do vasto potencial de lítio na Bolívia.

Posse marca fim de 20 anos de domínio socialista

A posse de Rodrigo Paz, um economista de 58 anos e filho do ex-presidente Jaime Paz (1989-1993), marca o ponto final em quase 20 anos de domínio do Movimento ao Socialismo (MAS), cuja figura central foi o ex-presidente Evo Morales. Esse ciclo de governos esquerdistas, que teve a aliança com Cuba e Venezuela como um de seus pilares, encerrou-se em meio a aplausos e delegações internacionais no Palácio Legislativo de La Paz.

Em seu discurso de posse, no sábado (8), Paz foi categórico ao estabelecer distância de seus antecessores, Evo Morales e Luis Arce, ex-ministro da Economia de Evo Morales (2006-2020) e seu sucessor na presidência. O presidente eleito, vitorioso pelo Partido Democrata Cristão (PDC) em outubro, prometeu que o país “nunca mais” ficará isolado da comunidade internacional.

A retórica de Paz encontrou eco no público que buscava mudança de rumo: “Nunca mais uma Bolívia isolada, submetida a ideologias fracassadas, muito menos uma Bolívia de costas para o mundo”. Essa declaração representa uma clara condenação ao modelo estatista e ideologicamente fechado que, segundo a visão do novo governo, levou a nação ao empobrecimento.

A importância desse realinhamento foi sublinhada pela presença de líderes regionais como Javier Milei (Argentina) e Gabriel Boric (Chile), além do subsecretário de Estado americano, Christopher Landau. A presença de Milei, defensor do livre mercado, e de Boric, que apesar da orientação de centro-esquerda mantém relações pragmáticas com a região, sinalizou o interesse em reintegrar a Bolívia ao circuito diplomático sul-americano. O presidente brasileiro Lula (PT) não compareceu à cerimônia, enviando em seu lugar o vice-presidente Geraldo Alckmin, um gesto que reforça o contraste ideológico na região.

Relações diplomáticas retomadas ao nível de embaixadores

A Bolívia e os Estados Unidos não mantinham relações diplomáticas completas desde 2008, quando o então presidente Evo Morales expulsou o principal diplomata dos EUA, acusando-o de apoiar uma conspiração da direita na Bolívia. Washington, em retaliação, adotou o mesmo movimento.

Rodrigo Paz iniciou a aproximação com os Estados Unidos nas últimas semanas, ainda como presidente eleito, chegando a viajar ao país para buscar ajuda financeira e a retomada das relações.

A formalização do fim do isolamento veio imediatamente após a posse. Paz e o vice-secretário de Estado americano, Christopher Landau, anunciaram o restabelecimento das relações diplomáticas ao nível de embaixadores. Este é um movimento de enorme peso político e estratégico, sinalizando que a Bolívia está pronta para reingressar no circuito de cooperação e investimento ocidental.

Reservas cambiais caíram 80% e subsídios consomem 3,4% do PIB

O principal motivo da reaproximação com os EUA é a crise econômica acumulada durante os governos do MAS.

Paz assume um país em crise econômica profunda. O modelo de gestão do governo anterior, liderado por Luis Arce, drenou as reservas cambiais para sustentar políticas assistencialistas. Segundo o Banco Central da Bolívia, as reservas despencaram de US$ 15,1 bilhões em 2014 — pico do boom do gás — para US$ 3,2 bilhões em outubro de 2024, uma queda de quase 80%.

Essas reservas foram drenadas para manter subsídios universais à gasolina e ao diesel. Segundo projeções do FMI, esses subsídios correspondem a 3,4% do PIB boliviano — um peso fiscal considerado insustentável pelos analistas econômicos e que compromete investimentos em infraestrutura e serviços essenciais.

A Bolívia havia experimentado um boom econômico impulsionado pelas exportações de gás entre 1999 e 2014, com auge entre 2004 e 2011, quando o gás representava mais de 50% das exportações e sustentava o superávit comercial. Com a queda desse setor, o país não consegue mais financiar as políticas assistencialistas que marcaram o período.

Os indicadores econômicos evidenciam a urgência da mudança:

  • O país enfrenta uma grave escassez de dólares e combustíveis.
  • A inflação anual atingiu 19% até outubro, após ter chegado a um pico de 25% em julho.
  • A crise levou o próprio Paz a questionar publicamente o legado da esquerda: “O que diabos fizeram com a gente com toda essa bonança? Por que há pessoas, famílias, que não têm o que comer hoje, se éramos tão ricos, com tanto gás e com o lítio como futuro?”.

Para a Bolívia, a retomada dos laços com os EUA e o Ocidente é, portanto, uma medida de sobrevivência pragmática, essencial para estabilizar a moeda, garantir a entrada de divisas e viabilizar o investimento estrangeiro necessário para reativar a produção.

Governo promete livre mercado e corte de subsídios aos combustíveis

O plano de governo de Rodrigo Paz representa uma mudança significativa em direção ao livre mercado e à responsabilidade fiscal, alinhando-se aos princípios que historicamente pautam a relação com os parceiros ocidentais, como os EUA. Paz prometeu uma série de reformas ambiciosas destinadas a desfazer os entraves criados pelos anos de domínio estatal e burocrático:

  • Abertura Econômica e Investimento: “O país precisa voltar a produzir,” declarou Paz. Seu plano inclui abrir a economia, atrair investimentos e reduzir as tarifas para bens que não são fabricados localmente.
  • Corte de Subsídios: Uma das medidas mais difíceis, mas consideradas essenciais para a saúde fiscal, é a promessa de cortar mais da metade dos subsídios aos combustíveis.
  • Modernização e Desburocratização: O governo promete um “governo da inovação, da ciência, da tecnologia e do futuro verde”. Além disso, ele aplicará uma ambiciosa descentralização e um programa de “capitalismo para todos”, focado na formalização da economia, eliminação de obstáculos burocráticos e redução de impostos, pilares centrais para destravar o potencial produtivo boliviano.

O novo presidente insiste que o desenvolvimento econômico deve caminhar junto com o respeito ao meio ambiente.

Contratos de lítio com China e Rússia serão revisados

O futuro imediato da Bolívia, e o sucesso da reaproximação com os Estados Unidos, está intrinsecamente ligado ao lítio, essencial para baterias de veículos elétricos.

A Bolívia possui 21 milhões de toneladas de lítio em reservas, segundo o United States Geological Survey (USGS) — mais que o dobro dos 9,3 milhões de toneladas do Chile. Contudo, quase todo esse recurso permanece no subsolo. Os depósitos bolivianos, localizados em salmoura, apresentam altos níveis de magnésio, o que historicamente encareceu a produção e dificultou a exploração comercial em larga escala.

O governo anterior de Luis Arce apostou em técnicas de extração direta e firmou contratos com empresas chinesas (Contemporary Amperex Technology) e russas (Uranium One) para desenvolver projetos de exploração. A equipe de Paz considera esses acordos “obscuros” e acredita que “foram firmados às escondidas das regiões e do país”, segundo um importante assessor econômico do novo presidente.

A estratégia de Paz é colocar a Bolívia entre os principais exportadores de lítio e, para isso, revisar os contratos existentes com as potências asiática e russa. Essa promessa de revisão acompanha diretamente a retomada das relações com os Estados Unidos e a busca pela assistência e expertise americana, assim como pelo capital ocidental, fundamental não apenas para a exploração da riqueza mineral, mas também para garantir a transparência e a segurança jurídica dos investimentos.

A Bolívia, no entanto, encontra-se em uma corrida contra o tempo. O mercado global de lítio já enfrenta excesso de oferta, e inovações em baterias que usam alternativas ao lítio podem reduzir a demanda futura. Além disso, o país ainda não possui certificação para suas reservas nem legislação clara sobre o mineral. Analistas alertam que a “janela de oportunidade” está prestes a se fechar. Se o país não agir rapidamente, corre o risco de ter uma “lei muito boa em um momento muito ruim — daqui a cinco anos — e ela não será mais aplicável”.

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