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As cartas estão na mesa: da negociação à implementação climática | ESG

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O regime internacional do clima passa por um momento de inflexão e a tônica da justiça climática parece cada vez mais concreta. Após quase uma década voltada à definição de compromissos nacionais, como as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), e à consolidação do Acordo de Paris, a pressão volta-se agora para a execução efetiva dessas metas. Governos e setores privados são cobrados não apenas a enunciar intenções, mas a demonstrar capacidade de implementação. A agenda se deslocou da retórica para a prática e essa mudança altera a natureza das negociações, que deixam de ser apenas fóruns de promessas para se tornarem espaços de avaliação de resultados e, inclusive, de definição de responsabilidades jurídicas.

Nas COPs, esse deslocamento é cada vez mais evidente. A lógica de apresentar relatórios e compromissos vagos cede espaço à exigência de planos robustos e ciclos de execução monitorados por indicadores verificáveis. Um exemplo foi a COP 28, em Dubai, que encerrou o primeiro Global Stocktake, um balanço coletivo que, pela primeira vez, mediu a distância entre as metas apresentadas e a realidade da implementação, reforçando a cobrança por medidas concretas de transição energética e adaptação. Países em desenvolvimento demandaram maior apoio financeiro e tecnológico, enquanto economias avançadas foram pressionadas a comprovar coerência entre seus discursos e suas políticas domésticas. Nesse processo, a governança climática passa a ser testada de forma mais incisiva, seja pela necessidade de enfrentar interesses consolidados em setores de alta emissão, seja pela urgência de criar instrumentos que assegurem transparência e fiscalização contínua.

O comércio internacional se tornou um dos pontos mais sensíveis desse novo cenário. A União Europeia avança com o Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira (CBAM), mas não é o único exemplo. Os Estados Unidos discutem medidas semelhantes para setores intensivos em carbono e o Japão já sinalizou maior rigor em padrões ambientais aplicados a importações. Além disso, iniciativas de taxonomia verde e regras sobre disclosure climático em bolsas de valores estão sendo articuladas como condições de acesso a mercados. Esses temas têm ocupado espaço central nas negociações multilaterais, ora em debates dentro da Organização Mundial do Comércio (OMC), ora como pontos paralelos nas próprias COPs, em que blocos de países discutem formas de compatibilizar a transição energética com a manutenção de competitividade internacional.

Nesse contexto, os mecanismos de ajuste de carbono na fronteira também devem ser analisados sob a ótica da justiça climática. A transição para uma economia de baixo carbono deve desfazer, e jamais aprofundar, desigualdades históricas. Aplicar tarifas unilaterais a países em desenvolvimento, muitos deles marcados por passados coloniais e com acesso mais barato e facilitado a combustíveis fósseis, é injusto quando tais medidas não são acompanhadas de apoio efetivo em termos de financiamento e transferência de tecnologia. É necessário distinguir, com base em critérios objetivos, os casos em que a manutenção de uma matriz fóssil representa uma vantagem econômica intencional daqueles em que ela é resultado da ausência de alternativas práticas decorrentes, principalmente, da falta de apoio. Seja nas negociações climáticas, seja no âmbito da OMC, esse tipo de situação exige análise criteriosa, sob pena de inviabilizar a tão necessária transição energética justa.

Essas discussões emergem com mais força após a COP 29 ter entregado um acordo de meta coletiva de financiamento muito abaixo daquela que era demandada por países em desenvolvimento para implementar medidas de mitigação e adaptação. Ou seja, a “era da implementação” do Acordo de Paris se inicia com muito menos combustível para movimentar essa máquina do que o necessário. Nesse contexto, debates sobre possibilidades de responsabilização dos Estados por descumprimento de obrigações ganha mais camadas de complexidade.

Estratégias de litigância acompanham esse processo de adensamento. O Tribunal Internacional do Direito do Mar, em sua opinião consultiva recente, estabeleceu que os Estados têm o dever de prevenir, reduzir e controlar as emissões de gases de efeito estufa provenientes de atividades sob sua jurisdição quando essas impactam o meio marinho. A Corte Internacional de Justiça (CIJ) delimitou a existência de uma obrigação geral de proteger o sistema climático em benefício das presentes e futuras gerações, o que inclui adotar medidas de mitigação consistentes com a ciência disponível. Já a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua Opinião Consultiva 32/25, afirmou que os Estados têm obrigações reforçadas de prevenir violações a direitos fundamentais decorrentes da crise climática, incluindo deveres de adaptação, mitigação e cooperação internacional. Essas manifestações transformam a agenda climática em um campo normativo cada vez mais vinculante e reduzem o espaço para a omissão estatal.

No Brasil, o reconhecimento da força normativa do Acordo de Paris também se consolidou na via judicial. Em decisões marcantes, o Poder Judiciário considerou o tratado um instrumento de direitos humanos, conferindo-lhe status constitucional reforçado. No julgamento da chamada “pedalada climática” — quando a meta brasileira foi alterada sem respeitar a lógica da progressividade — e na ação que bloqueou recursos do Fundo Clima por inércia do governo federal anterior, o Supremo Tribunal Federal reforçou que o Brasil tem a obrigação de respeitar os compromissos assumidos internacionalmente, incluindo o dever de elevar progressivamente sua ambição climática. Esses precedentes internos contribuem para consolidar o caráter jurídico da agenda climática e mostram que os tribunais podem atuar em âmbito interno como freios à omissão ou retrocesso das políticas públicas ambientais.

A ideia de que o clima é apenas uma matéria de compromissos políticos dá lugar à compreensão de que se trata de um regime de deveres jurídicos que pode gerar consequências concretas para Estados e empresas. Isso aumenta a pressão sobre governos, que passam a correr o risco de serem responsabilizados em arenas multilaterais, e sobre setores produtivos, que veem emergir a expectativa de conformidade com padrões climáticos como requisito para manter operações globais.

Esse processo desenha um cenário ambíguo e desafiador. De um lado, a inação pode gerar custos crescentes – como evidenciam os riscos enfrentados por setores exportadores diante da aplicação de ajustes de fronteira, ou os litígios já movidos contra governos que falharam em garantir a progressividade dos compromissos climáticos assumidos. De outro lado, a emergência de normas climáticas com força jurídica e a crescente interligação entre política climática, comércio e governança global também abrem novas oportunidades. Países que estruturam estratégias concretas de transição energética, com atenção à justiça distributiva e às suas responsabilidades diferenciadas, ganham acesso a mercados, atraem financiamento e fortalecem sua posição internacional.

O regime climático caminha, assim, para um estágio em que a omissão se torna passível de responsabilização – tanto no plano internacional quanto no âmbito doméstico –, ao mesmo tempo em que liderança e inovação se convertem em ativos diplomáticos e econômicos centrais. Mais do que uma escolha estratégica, implementar a agenda climática com justiça tornou-se uma exigência de legitimidade, governança e viabilidade.

André Castro Santos é diretor técnico da LACLIMA. Doutor em direito ambiental (USP) e em ciências sociais (Universidade de Lisboa). Mestre em direito ambiental (USP). Bacharel em direito e em geografia (ambos pela USP). Conselheiro Acadêmico da Youth Climate Leaders. Especialista em regime climático internacional,

Gabriel Mantelli é consultor Sênior de Projetos da LACLIMA. Doutorando em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP. Advogado com atuação nas áreas de direitos humanos, justiça climática e teoria do direito.

(*) Disclaimer: Este artigo reflete a opinião do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso destas informações.

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