Infelizmente temos assistido a uma crescente onda de feminicídios no país e vimos inúmeras manifestações contra esse tipo de violência em diversos países. Não se trata de uma questão local, embora os índices sejam ainda mais alarmantes no Brasil. Os especialistas reforçam que são necessárias ações na educação, articuladas com saúde e justiça para que mudanças estruturais e culturais aconteçam. Nessa questão educacional, convém pensar em como construímos o imaginário de masculinidade e feminilidade que guiam comportamentos.
No livro “Notes on being a man” (ainda não publicado no Brasil), o autor Scott Galloway diz que “ser um bom pai significa ser bom para a mãe de suas crianças”. Seria óbvio e pouparia o sofrimento (e suas danosas consequências) para muitas crianças, não fosse a psicodinâmica que organiza as relações entre homens e mulheres há séculos. Com base em suas experiências de criança, dificuldades com a separação dos pais, impossibilidade de ganhar dinheiro, sentimentos de raiva e depressão, Galloway mostra que espaços de violência abrigam, de alguma forma, o sofrimento dos homens.
Embora a psicanálise tenha sido esquecida nesses últimos tempos, vale lembrar o conceito clássico de Freud, que definiu o desenvolvimento psíquico das mulheres com base no conceito de “falta”: a falta do poder do aparelho reprodutor masculino, conceito que foi, evidentemente, questionado por psicanalistas feministas. Ainda mais esquecida é a psicanalista norte-americana, Karen Horney, que criou o conceito de “inveja do útero”. Em contraposição ao modelo freudiano, Horney mostra que muitas funções biológicas femininas como gravidez, parto e amamentação são fontes da ansiedade masculina. E, para compensar essa “falta”, surge o ressentimento e a desvalorização de funções femininas. Assim como a teoria freudiana, a teoria de Horney e seus afiliados também tem sido contestada, por estar apoiada em padrões binários e biologicamente deterministas, onde a mulher é associada somente com maternidade.
Frente ao poder simbólico da maternidade, alguns estudos recuperam Horney para explicar o ressentimento contra mulheres e a misoginia em alguns homens. Para vencer a impossibilidade da gestação, homens criam diversas dinâmicas de superioridade em outras esferas de poder. E, na impossibilidade de se destacarem nessas esferas, podem culpabilizar as mulheres, assim como as crianças quando tropeçam e empurram com violência a cadeira que estava no caminho sem refletirem sobre a própria falta de atenção ao andar.
Arrisco trazer esses conceitos para tratar da complexidade do tema que decorre de trajetórias e memórias de vida nem sempre conscientes, porém atuantes na construção da masculinidade e da feminilidade, como mostra Galloway na sua história de vida. Enquanto a vida não é totalmente gerada em laboratórios, os humanos sempre terão um pai e uma mãe a lembrar em infâncias felizes e outras não tanto.
Além das questões psicodinâmicas, o contexto social importa. A depender do contexto psicossocial e da estrutura da família, esses impulsos podem se manifestar. E, hoje, o contexto socioeconômico não está favorável ao estabelecimento de relações de confiança, impactando diretamente nas relações amorosas. O The Economist mostrou recentemente, o aumento da condição de ser solteiro e, em consequência, da reorganização das relações humanas, sem o casamento como base da estrutura social. Trata-se de uma mudança de costumes gigantesca, a impactar a organização social que norteou o século passado.
O mal-estar experimentado pelos homens parece ter se intensificado com a progressão das mulheres que, atualmente, avançaram em número de anos de escolaridade. De um lado, o poder feminino cresce e, de outro, como escrevi em outra coluna tempos atrás, os ideais masculinos de sucesso ficam cada vez mais inalcançáveis, com as profundas alterações nos sistemas econômicos globais. Não há espaço para que todos ocupem posições de poder e o modelo de uma carreira sempre ascendente não existe mais. Os jovens não encontram mais as portas abertas para se desenvolverem dentro de um sistema organizado que necessariamente favorece boas remunerações. Ao contrário, hoje é cada um por si, em sistemas sociais cada vez mais desiguais. A identidade baseada apenas no trabalho desaparece e os homens ficam sem um esqueleto que os sustente, enquanto as mulheres, ainda que enfrentando barreiras no trabalho, contam com outras fontes de identidade. Amor e trabalho, que foram para Freud a base de uma vida digna, parecem não existir mais.
Nenhuma dessas interpretações, entretanto, justifica as atrocidades cometidas; são apenas considerações sobre a complexidade desse fenômeno que se expressa globalmente. A civilidade é construída no dia a dia, em pequenas ações cotidianas. Nesse final de ano, assim como em todos os finais de ano, desejo que possamos conviver com o diferente, com o Outro, sem que isso seja fonte de conflito e violências.
Maria José Tonelli é doutora em psicologia social, professora titular na FGV–EAESP, e especialista em diversidade e desenvolvimento de lideranças.
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