A punição de prisão domiciliar aplicada ao general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, aos 78 anos, marca o ponto mais recente e sombrio da trajetória de um dos oficiais mais influentes do Exército brasileiro nas últimas décadas.
O militar que chegou ao topo da hierarquia do Exército, liderou a maior ação militar brasileira no estrangeiro desde a Segunda Guerra, enfrentou pressão dos Estados Unidos, comandou a defesa da Amazônia, confrontou o presidente Lula e chefiou a inteligência brasileira acaba confinado em casa após condenação por participação na suposta tentativa de golpe de Estado de 2022.
Na segunda-feira (22), o ministro Alexandre de Moraes concedeu o regime domiciliar após a perícia médica da Polícia Federal confirmar o diagnóstico de demência de etiologia mista em estágio inicial (Alzheimer). O laudo foi utilizado por Moraes para analisar o pedido da defesa para que o militar fosse para casa.
Antes de se tornar réu e condenado pelo Supremo Tribunal Federal, Heleno construiu uma reputação sólida dentro da caserna e mesmo o establishment jurídico relutou em dar ao general regimes de cumprimento de penas tão duros quanto os dados a outros aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Heleno fez história no Exército desde o início. Ele foi o segundo militar, depois de João Batista Figueiredo, a receber por três vezes as medalha Marechal Hermes por ser o primeiro colocado nos três principais cursos de formação do Exército, a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO) e a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Ele é o que se chama no Exército de tríplice coroado.
Nascido em Curitiba, em 1947, Heleno ingressou ainda adolescente no Colégio Militar do Rio de Janeiro. Em 1969, formou-se aspirante da arma de Cavalaria pela AMAN como primeiro colocado de sua turma. O desempenho acima da média se repetiria nos cursos seguintes, consolidando uma imagem de oficial disciplinado, tecnicamente preparado e alinhado ao pensamento estratégico predominante nas Forças Armadas.
Essa trajetória acadêmica abriu caminho para funções sensíveis ao longo da carreira. Heleno atuou como instrutor na própria AMAN, realizou cursos especializados — como paraquedismo militar e operações na selva — e avançou de forma contínua na hierarquia. O currículo robusto, aliado à reputação interna, fez dele um nome recorrente para cargos de confiança, tanto em áreas operacionais quanto em postos ligados à formulação doutrinária e à comunicação institucional do Exército.
No Haiti, o general comandou missão da ONU em cenário de instabilidade
Sua fama e liderança se tornaram públicas quando assumiu a comunicação social do Exército e, em 2004, foi nomeado comandante geral das forças da ONU no Haiti (MINUSTAH, entre 2004 e 2005). A fama de participar de ações de combate à frente dos soldados para puxar a tropa na linha de frente, de fuzil na mão, logo ganhou as páginas dos jornais. Heleno enfrentou a pressão americana por mais confrontos para impor o jeito brasileiro das forças de paz que dava preferência à negociação. Mas também soube usar a força para eliminar as principais lideranças rebeldes de viés esquerdista do Haiti.
Eles lutavam pelo poder no país ao mesmo tempo em que exerciam atividades criminais após a deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide.
Um dos episódios mais marcantes de sua passagem pela MINUSTAH ocorreu em julho de 2005, durante uma grande operação no bairro de Cité Soleil. A ação, conduzida por tropas sob comando brasileiro, foi classificada como bem-sucedida do ponto de vista militar pelas autoridades da missão e pelo governo haitiano ao eliminar o líder guerrilheiro Dred Wilme. Ao mesmo tempo, organizações de direitos humanos e veículos internacionais levantaram questionamentos sobre possíveis mortes de civis durante os confrontos.
Heleno rejeitou as acusações. Em audiência na Câmara dos Deputados, em 2005, afirmou que as tropas atuaram dentro das regras de engajamento da ONU e que as denúncias não tinham comprovação. Sustentou ainda que decisões operacionais foram tomadas em um ambiente de alta complexidade, marcado por forte presença de armamento ilegal e violência generalizada.
“Os direitos humanos são a linha divisória entre os regimes democráticos e os totalitários, mas é preciso tratar dessa questão com muita responsabilidade e, antes de dar credibilidade a ataques a um trabalho que é difícil e tão importante, é preciso verificar os interesses que estão por trás das denúncias”, argumentou Heleno ao rebater críticas de entidades ligadas à defesa dos direitos humanos.
O general também exerceu papel fundamental no início da desmobilização de ex-militares haitianos que haviam formado um exército rebelde.
Apesar das controvérsias, o comando no Haiti ampliou sua projeção internacional e reforçou seu prestígio dentro do Exército. Ele passou a ser enxergado como um tipo de herói informal. A experiência consolidou sua imagem de oficial com perfil operacional e defensor da autoridade militar como instrumento central para lidar com crises de segurança. Ele chegou ao Alto Comando do Exército e exerceu a função de chefe de gabinete.
Amazônia e Raposa Serra do Sol levaram Heleno a embates com Lula e PT
Entre 2007 e 2009, Heleno comandou o Comando Militar da Amazônia, uma das regiões mais estratégicas e sensíveis do país. À frente de uma área marcada por fronteiras internacionais, presença indígena expressiva e desafios logísticos permanentes, o general passou a atuar em um ambiente onde defesa, política ambiental e interesses civis frequentemente se cruzam.
Foi nesse contexto que ele se envolveu no debate sobre a demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Embora a homologação definitiva tenha ocorrido em 2005, o tema já mobilizava discussões internas enquanto Heleno exercia funções de destaque. Em declarações públicas posteriores, em 2008, o general criticou o modelo adotado pelo governo federal, afirmando que a demarcação poderia dificultar a presença do Estado em áreas de fronteira.
Os argumentos enfatizavam preocupações com soberania, logística e segurança nacional — posições que encontraram apoio em setores militares e rurais, mas contrariaram a linha oficial do governo, baseada na Constituição e em decisões do Supremo Tribunal Federal. As manifestações foram recebidas no Planalto, ocupado à época por Lula, como inadequadas para um oficial da ativa e interpretadas como extrapolação dos limites da hierarquia.
Após o episódio, Heleno foi deslocado para funções consideradas menos operacionais, movimento que ele e aliados passaram a interpretar como uma punição informal. O caso marcou um desgaste duradouro na relação com os governos do PT e passou a simbolizar, para o general, um desacordo mais amplo sobre o papel das Forças Armadas e a condução de políticas públicas na Amazônia.
Ele era um dos principais cotados para ser comandante do Exército e seu nome chegou a ser cogitado para uma candidatura à Presidência.
Em 2018, Heleno chegou a ser cotado para vice de Jair Bolsonaro e acabou se tornado ministro do Gabinete de Segurança Institucional. A esperança na caserna era que Heleno pudesse levar ao governo de Bolsonaro a capacitação técnica e o talento de estrategista. Mas nem sempre suas sugestões foram adotadas pelo então presidente.
O que dizem as investigações sobre o papel de Heleno no inquérito do suposto golpe
O capítulo mais sombrio da trajetória de Augusto Heleno começou a se desenhar a partir das investigações sobre a tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022. Segundo a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República, o general — então ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional — integrou o chamado “núcleo estratégico” do grupo que atuou para desacreditar o sistema eleitoral e criar condições para impedir a posse do presidente eleito.
De acordo com a apuração, Heleno participou de reuniões e discussões voltadas à construção de uma narrativa de desconfiança sobre as urnas eletrônicas e o processo eleitoral, além de integrar o círculo mais próximo do então presidente Jair Bolsonaro em embates contra decisões do Judiciário. Anotações apreendidas em sua residência e registros de encontros no Palácio do Planalto foram citados como indícios de envolvimento em debates sobre medidas de exceção.
A acusação sustentou que, mesmo sem atuação operacional direta, o general exercia influência relevante na formulação política e estratégica do movimento, potencializada por sua posição no GSI e pelo acesso a informações de inteligência. A defesa, por sua vez, afirmou que não houve qualquer ação concreta para romper a ordem democrática e que os elementos citados no inquérito se limitariam a reflexões pessoais.
Essa leitura também foi reforçada por declarações do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, que minimizou o papel de Heleno na suposta trama. Ainda assim, o Supremo Tribunal Federal acolheu a denúncia, e o general acabou condenado por crimes contra o Estado Democrático de Direito.
A prisão de Heleno também causou cisão dentro do Exército. Sob reserva, um general contou à Gazeta do Povo que parte dos militares vê o processo conduzido pelo Supremo como um “justiçamento”, com falhas no devido processo legal e ausência de provas que sustentem a narrativa de golpe.
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