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Projeto da Câmara elimina poder do STF de “legislar” e “governar”

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Um projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados nesta semana pode pôr fim à capacidade do Supremo Tribunal Federal (STF) de criar normas provisórias, substituindo o Congresso, e de impor ao Poder Executivo medidas “estruturantes” — políticas públicas não previstas em lei. Críticos da Corte dizem que são formas usadas pelos ministros para “legislar” e “governar”.

Se aprovada no Senado, a proposta ainda reverteria uma tentativa do ministro Gilmar Mendes de consolidar, em lei, esse tipo de decisão, chamada aditiva ou normativa.

Essas decisões se tornaram comuns quando ministros do STF anulam, total ou parcialmente, uma lei, um decreto ou uma emenda constitucional, por considerarem que as normas em vigor contrariam a Constituição ou suas cláusulas pétreas e criam outras provisórias em seu lugar.

Decisões normativas também têm sido proferidas quando a Corte entende que direitos constitucionais não são exercidos por ausência de regulamentação. Essas normas provisórias são frequentemente criticadas por parlamentares, que acusam a Corte de interferir em suas prerrogativas de legislar.

Um exemplo recente de norma criada pelo STF se refere às redes sociais. Neste ano, o tribunal declarou a inconstitucionalidade parcial de um artigo do Marco Civil da Internet que isentava as plataformas de responsabilidade pelo conteúdo publicado por usuários.

A Corte aumentou a responsabilização das empresas de tecnologia e impôs a elas uma série de obrigações para conter a disseminação de conteúdos nocivos, até que o Congresso legisle novamente sobre o tema para criar uma regulamentação mais ampla.

Além de acabar com decisões normativas, o projeto aprovado na Câmara também põe fim às medidas estruturantes, impostas pelo STF ao Poder Executivo.

Um caso atual é o plano homologado pelo STF para que o estado do Rio de Janeiro adote práticas que reduzam a violência policial em incursões nas favelas. O objetivo é diminuir a violência nas comunidades pobres.

Esse tipo de poder atual do STF será reduzido caso o Senado aprove o PL 3640/2023. O projeto foi aprovado na terça-feira (30), em caráter conclusivo, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, a partir de um raro consenso entre PT e PL.

A deputada Bia Kicis (PL-DF) elogiou o “trabalho hercúleo” do relator, Alex Manente (Cidadania-SP). “Nós temos um excelente diálogo e, até o fim, [Manente] ouviu e ajustou [o texto] para permitir que o PL votasse favoravelmente por unanimidade a esse projeto”, disse.

O deputado Rubens Pereira Júnior (PT-MA) disse que o projeto é “importantíssimo”. “Ele disciplina a tramitação dos processos constitucionais e, portanto, limita a forma de atuação do Poder Judiciário. E isso está sendo feito por meio de lei, que é o caminho adequado”, disse o petista.

O projeto original foi concebido por uma comissão de juristas presidida pelo ministro Gilmar Mendes, decano do STF, com o objetivo de consolidar, em lei, as práticas atuais da Corte. Trata-se de uma regulamentação da proposição e tramitação, no tribunal, das ações de controle concentrado de constitucionalidade:

  • ADIs: ações diretas de inconstitucionalidade, que buscam anular uma norma;
  • ADOs: ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, que buscam forçar o Congresso a legislar para que um direito possa ser exercido;
  • ADCs: ações declaratórias de constitucionalidade, que buscam confirmar se determinada lei é constitucional; e
  • ADPFs: arguições de descumprimento de preceito fundamental, que podem questionar normas anteriores à Constituição de 1988.

Essas ações continuariam existindo, mas teriam alcance mais limitado. Hoje, elas podem ser ajuizadas no STF por partidos políticos com representação no Congresso, sindicatos e entidades de classe nacionais, Presidência da República, Mesas do Senado, da Câmara ou de Assembleias Legislativas, por governadores, pela Procuradoria-Geral da República ou pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

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Projeto impõe prazo e condições para decisões monocráticas

A proposta começou a tramitar na Câmara em 2023 como reação à aprovação, no Senado, de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que praticamente extinguiria as decisões monocráticas. A PEC proibia que um único ministro suspendesse a vigência de uma norma por entender que ela contraria a Constituição.

O texto original do projeto da Câmara mantinha a possibilidade de decisões monocráticas e ratificava a competência do STF de “estabelecer regime normativo transitório para assegurar segurança jurídica” — ou seja, criar uma norma provisória.

O novo texto aprovado pela CCJ da Câmara eliminou essa possibilidade, bem como a previsão, na versão original, de dar ao STF a competência para “estruturar provisoriamente as condições em que se dará o exercício dos direitos, das liberdades ou das prerrogativas” reivindicados na Corte por falta de regulamentação legal.

O novo texto manteve as decisões monocráticas, mas com validade curta. Atualmente, quando um ministro suspende uma lei, não há prazo fixo para que ele leve a questão ao plenário, para uma decisão colegiada.

O regimento interno do STF diz que essas decisões devem ser submetidas a referendo “imediatamente”, de preferência no plenário virtual, mas sem prazo determinado.

O projeto aprovado na Câmara obriga o ministro a submeter sua decisão monocrática a referendo “na primeira sessão de julgamento subsequente à sua prolação”. Se isso não ocorrer, a decisão será nula, e o STF deverá definir o que ocorrerá nas situações criadas no período em que a norma ficou suspensa pela decisão do ministro.

As decisões monocráticas que suspendem uma norma só poderão ser proferidas “em caso de extrema urgência, perigo de lesão grave, excepcional interesse social, ou ainda, em período de recesso”. Caberá ao próprio relator avaliar se essas condições estão presentes no pedido.

Projeto acaba com decisões “aditivas”, “normativas” e “estruturantes”

O projeto aprovado na Câmara também eliminou a previsão do texto original de decisões “de caráter aditivo ou normativo”. As decisões aditivas são aquelas em que o STF “complementa textualmente o ato normativo impugnado para fazer sua adequação à Constituição Federal”. Ocorre quando a Corte, literalmente, elabora uma nova norma quando considera que outra que está em vigor não atende à Constituição.

O texto original do projeto ainda definia que essas normas deveriam “decorrer de aplicação direta da Constituição Federal ou de regime jurídico legalmente existente para situações análogas”. A versão final do projeto da Câmara acabou com essa possibilidade, que hoje já é praticada pelo STF.

Outra prática atual da Corte diz respeito às decisões normativas, quando os ministros editam uma nova norma para efetivar um direito da Constituição que, segundo eles, não está sendo exercido na prática. Nesses casos, o tribunal poderia “estruturar as condições em que se dará o exercício dos direitos, das liberdades ou das prerrogativas reclamados ou, se for o caso, as condições em que poderá o interessado promover ação própria visando a exercê-los”. Isso também foi retirado da versão final do projeto aprovado na Câmara.

O texto original de Gilmar Mendes possibilitava ainda que o STF editasse essas normas quando os ministros vislumbrassem qualquer omissão do Congresso em legislar que causasse “violações a direitos fundamentais ou a bens jurídicos constitucionais”. Na versão final, a omissão só acontece se o Congresso não aprovar uma lei determinada expressamente pela Constituição, “com comando explícito de regulamentação”.

A CCJ ainda eliminou do texto original, concebido por Gilmar Mendes, que o STF pudesse “ordenar medidas de caráter estruturante”, ou seja, ações concretas e específicas para que o Executivo cumprisse decisões da Corte.

Por fim, também caiu a possibilidade de o STF firmar acordos entre as partes, outra prática atual, segundo a qual o ministro relator reúne as partes interessadas na anulação de uma lei para estabelecer uma solução de consenso.

Exemplos recentes envolveram a fixação, entre estados, de alíquotas de ICMS sobre combustíveis, a reparação de municípios afetados pelo rompimento de uma barragem da Samarco em Mariana (MG) e o fornecimento de medicamentos caros pelo SUS.

Alterações satisfizeram oposição, mas ainda há pontos problemáticos em texto

Lideranças da oposição ouvidas pela Gazeta do Povo avaliaram que o texto construído em acordo na CCJ melhorou muito a proposta original, embora o texto ainda apresente problemas.

O texto final poderia ser alvo de um recurso, que faria com que a proposta tivesse que ser analisada pelo plenário da Câmara, e não apenas pelas comissões, como ocorreu. No entanto, apesar de pontos critícos, a oposição entendeu que é melhor seguir com a aprovação do texto construído no acordo do que o STF continuar agindo do jeito que está.

Os problemas que o texto final manteve dizem respeito às decisões monocráticas, que não foram totalmente abolidas, e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade por Omissão (ADOs), que buscam forçar o Congresso a legislar para que um direito possa ser exercido. O Parlamento entende ter liberdade de não querer legislar ou alterar leis vigentes sobre determinados assuntos.

No caso das ADOs, o entendimento é que com o texto aprovado, o STF ainda poderá obrigar o Congresso a legislar sobre assuntos em que a Corte entenda que há necessidade explícita de regulamentação. Já nas decisões monocráticas, quando o texto fala sobre “excepcional interesse social”, a hipótese foi considerada muito abrangente.

O que dizem especialistas sobre o projeto

Para o advogado Leonardo Corrêa, mestre pela University of Pennsylvania e presidente da Lexum, o projeto da Câmara peca por manter e reforçar o controle concentrado de constitucionalidade — isto é, a análise pelo STF de leis ou atos normativos de forma abstrata, sem se referir a um caso concreto entre partes em disputa.

“O controle concentrado, como se estruturou no Brasil, promoveu uma concentração excessiva de poder no STF, frequentemente em detrimento do Legislativo. O Supremo deveria ser um tribunal de justiça, com foco em casos concretos, não um ator político central”, afirma Corrêa.

Já o deputado Gilson Marques (Novo-SC) afirmou que “o texto aprovado dá maior segurança jurídica e equilíbrio entre os poderes. Prevê, por exemplo, que decisões em medidas cautelares de ações constitucionais devam ser colegiadas em regra, podendo serem monocráticas somente em casos específicos sob pena de nulidade. O que vemos hoje é o oposto, causando uma verdadeira inversão dos poderes em que a caneta monocrática de um ministro sem voto vale mais do que o Congresso inteiro eleito”.

Mas a advogada constitucionalista Vera Chemin observa que a lei corrobora, em certa medida, práticas já adotadas pelo STF. “Prioriza, de forma escancarada, a constitucionalidade e a legalidade das recentes condutas daquele tribunal, seja do conjunto de seus membros ou de cada um em particular”, afirma.

Para André Marsiglia, advogado constitucionalista, “em um momento de queda de braço, o legislador deve focar em fortalecer o Congresso, não em regular o STF”. “Até porque a Corte não cumpre as regras impostas pelo Congresso, sejam as novas, sejam as antigas, quando da confecção da Constituição. O texto do projeto tem pontos cegos que podem dar margem a interpretações favoráveis aos ministros, o que é perigoso”, avalia Marsiglia.

O relator da versão final, deputado Alex Manente (Cidadania-SP), destacou que as decisões monocráticas, tão criticadas, seriam julgadas rapidamente de forma colegiada. “A validade é curta e a comprovação da necessidade e urgência será fundamental”, disse. Questionado pela Gazeta do Povo sobre a clareza e a objetividade das condições para que um ministro suspenda uma norma (“extrema urgência, perigo de lesão grave, excepcional interesse social”), Manente afirmou, por meio de sua assessoria, que “os conceitos de urgência e perigo de lesão grave são objetivos”.

O advogado e mestre em Direito Constitucional Ricardo Facundo afirma que a proposta privilegia a deliberação conjunta. “Embora reconheça essa prerrogativa dos ministros de análise monocrática, o projeto estabelece algumas condicionantes como forma de equilibrar a atuação da Corte frente à necessidade de atuação colegiada, a exemplo da submissão da decisão ao colegiado do STF, privilegiando a colegialidade como forma de legitimar a suspensão de normas e/ou atos dos demais Poderes”, avalia.

Os deputados do Novo, Marcel van Hattem (RS), Adriana Ventura (SP) e Gilson Marques (SC), tentaram eliminar do texto o trecho que flexibiliza as decisões monocráticas, mas as emendas apresentadas foram rejeitadas pelo relator.

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