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10 caminhos para a reconstrução da segurança pública no Rio

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A megaoperação realizada no dia 28 de outubro de 2025 nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro — com 121 mortos e mais de 100 presos — escancarou um problema que vai muito além do confronto armado. Especialistas em segurança e defesa ouvidos pela Gazeta do Povo apontam que a retomada de territórios dominados por facções, como o Comando Vermelho (CV), depende de reformas estruturais, integração entre diferentes esferas de governo, muito investimento público, políticas de longo prazo e, acima de tudo, vontade política.

A perspectiva dos especialistas é que, se as medidas forem adotadas de imediato, algumas mudanças começarão a ser sentidas em uma década e isso vai exigir bilhões dos cofres públicos. “Não é algo de um dia para o outro. O crime organizado no Rio vem se estruturando há décadas então a desmobilização vai levar anos, décadas, vai custar bilhões e é como reconstruir, retomar uma área afetada pela guerra”, afirma o especialista em Direito Penal, Márcio André Nunes.

Nunes alerta que a medida precisa ser de Estado e não de governos. “Se um governo abraçar a causa para um palanque político, continuará da forma como está ou vai piorar com regiões dominadas pelo narcoestado”, completa.

O presidente da Associação de Guardas Municipais do Brasil, Reinaldo Monteiro, afirmou que a expansão do crime organizado nas favelas é consequência direta da omissão histórica do poder público. A ausência de serviços municipais básicos abriu espaço para que facções e milícias passassem a controlar territórios e oferecer à população aquilo que o Estado deveria garantir. “Os criminosos vão se organizando e tomando conta das comunidades porque os municípios deixam tudo à própria sorte”, afirmou.

A reportagem levantou informações sobre dez eixos estratégicos que já vem sendo trabalhados no Rio, porém de forma descontínua.

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1. Retomada de território e reestruturação de UPPs

O primeiro e um dos mais importantes passos elencados pelos especialistas está na retomada do território que está sob o domínio das facções. O Rio de Janeiro tem atualmente cerca de 1,9 mil comunidades e favelas e quase 95% estão dominadas ou sofrem influência de alguma organização criminosa.

Em seguida, analisam os especialistas, a retomada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) é vista como essencial, mas defendem um novo modelo, com foco em pequenas e médias comunidades, tendo em vista que elas não se sustentam, no modelo como o aplicado na década passada, nos grandes complexos, como os da Penha e do Alemão.

As bases da UPP foram pensadas para funcionar como pontos de projeção de poder, de onde partiriam patrulhas a pé percorrendo ruas e vielas até chegar a outra base da polícia e recomeçar o procedimento. Nas grandes favelas isso não aconteceu e as UPPs se tonaram pontos fortificados cuja única missão era sobreviver ao ser alvo diário de tiros. As trocas de turno só eram feitas com blindados caveirões ou por vezes com anuência do tráfico.

Por isso, as bases da PM foram tiradas das grandes favelas e reinstaladas em suas proximidades. O policiamento comunitário foi trocado pelo policiamento normal, mais preparado para o confronto. O modelo inicial continua em favelas menores.

Segundo Paulo Storani, ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope) no Rio de Janeiro, “as UPPs funcionam quando há permanência e integração social”. “O erro do passado foi expandir demais sem garantir estrutura e continuidade”.

Ele reforça que o projeto deve ser redesenhado com base na ocupação progressiva, acompanhada de políticas públicas. “A reocupação sem Estado permanente é perda de tempo. É preciso garantir escolas, saúde, emprego e serviços para consolidar a presença institucional”.

O cientista político Marcelo Almeida lembra que a própria estrutura das UPPs foi desmantelada quando o então governador, Sérgio Cabral tentou ampliá-las para a Baixada Fluminense. “Às vésperas de uma eleição, o governo do Rio perdeu a mão e o projeto também acabou perdendo a essência, em vez de segurança, focou em política e não funcionou”, destaca.

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2. Geração de renda nas comunidades

Para Alessandro Visacro, membro do grupo Defesa, Segurança e Inteligência da USP, o combate às facções passa, após a retomada dos territórios, pela transformação do ambiente social em uma estratégia similar à doutrina da contrainsurgência.

“A repressão, as operações são necessárias, devem ocorrer periodicamente, mas sem alternativas econômicas à população local e a ocupação do Estado, o crime sempre vai voltar e recrutar novos soldados”, alerta.

Entre as medidas de incentivo econômico estariam programas de inclusão produtiva, microcrédito e capacitação profissional, apontadas como instrumentos essenciais para reduzir a influência e o poder da “máquina do tráfico”. O governo estadual reconheceu que a ausência de oportunidades ainda é o principal motor da adesão de jovens ao crime. “E vai muito além, sem perspectivas dentro de suas comunidades ou sem uma janela de prosperidade, jovens e adolescentes acabam vendo no crime organizado uma forma de ascender, de ter dinheiro e moral nas favelas”, avalia a economista, especialista em análise territorial, Regina Martins.

Reinaldo Monteiro avalia que a falta de presença institucional e de políticas sociais efetivas alimenta o domínio do crime, tornando urgente uma mudança de cultura nas favelas e a geração de renda que devolva aos moradores a confiança nas instituições.

3. Mudança de cultura nas favelas

Os especialistas avaliam que não há paz duradoura sem uma mudança cultural profunda nas comunidades. “O crime criou uma estrutura de poder simbólico e social que precisa ser desconstruída”, explica Visacro.

Isso inclui fortalecer líderes locais, incentivar a participação cidadã e promover projetos de cultura e esporte. A reconstrução da confiança entre moradores e instituições é apontada como um desafio para substituir o “poder paralelo” pelo Estado.

Se soma a isso, segundo análise de Martins, o fato de existir uma essência cultural que fomenta o crime organizado, com bailes funks custeados por criminosos em que faccionados se tornam referência além de renda e poder, de um modelo cultural que retroalimenta o crime. “Os traficantes se tornam influentes, poderosos, com armas, bons carros, populares entre as jovens, renovando um ciclo econômico e social da criminalidade. Isso precisa ser revertido”, completa.

Para Monteiro, enfrentar o problema exige não apenas confrontos pontuais, mas um plano permanente de presença do Estado e reconstrução social dentro das comunidades.

4. Confrontos e operações periódicas

Apesar da necessidade de políticas sociais, as operações continuarão inevitáveis. “Enquanto houver domínio territorial armado, o Estado precisa agir também com a força. O que não pode é fazer isso sem planejamento e sem uma política de manter o território longe dos traficantes, o que não ficou claro após a operação é o que será feito nos dias seguintes. O crime organizado vai voltar a viver normalmente?”, questiona Sérgio Leonardo Gomes.

Paulo Storani defende que as incursões sejam planejadas com base em inteligência e mapeamento prévio, evitando ações improvisadas e reduzindo o risco de civis atingidos. “Operações são parte do processo, não a solução final”, conclui Storani.

5. Melhoria da logística e dos equipamentos policiais

O presidente do Comitê de Defesa e Segurança da Câmara Britânica, José Augusto Leal, destacou que a defasagem logística do Estado tem sido um obstáculo grave. “Enquanto o crime usa drones e armas importadas, a polícia ainda enfrenta problemas básicos, como falta de equipamentos de comunicação e blindagem adequada”, pontua.
Ele ressalta que o Estado precisa agilizar compras públicas – licitações – e adotar critérios técnicos modernos. “O crime não espera licitação. A lentidão burocrática custa vidas e território”, alerta.

Para Gomes, há falhas graves e estruturais em planejamento, organização de licitações e a pesada burocracia do Estado, que não pesa nem é um problema para as facções. “O sistema policial brasileiro enfrenta sérias limitações estruturais, compras públicas, logística e planejamento: tem efetivo reduzido, baixos salários, excesso de burocracia, falta de equipamentos e recursos para operações, além de restrições legais e dificuldades de integração entre as forças”, completa o investigador.

Em outras palavras, os burocratas da polícia não conseguem em linhas gerais fazer projetos de licitação que não sejam rejeitados pelos órgãos de controle. Para mudar isso é preciso treinamento específico.

Além disso, o estado precisa ter uma política de compra de veículos e equipamentos contínua. O cenário mais comum é o de grande compras midiáticas nas quais depois de alguns anos, sem política de manutenção e substituição de peças, todos os equipamentos se deterioram simultaneamente.

Segundo ele, essas barreiras comprometem a eficiência do combate ao crime e contrastam com a realidade das organizações criminosas, que operam com liberdade, financiamento próprio e sem os entraves administrativos que paralisam o Estado.

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6. Avanço tecnológico e rastreio do dinheiro

Leal reforça que o uso de tecnologia de ponta para as forças de segurança é indispensável. Ele propõe a adoção de sistemas modernos antidrone, softwares de inteligência artificial para cruzamento de dados e ferramentas de rastreamento financeiro.
“Estamos enfrentando inimigos com capacidade de inovação. O Estado precisa deixar de reagir e passar a antecipar movimentos criminosos”, afirma. Ele cita o uso de jammers — equipamentos que bloqueiam sinais de drones — e o fortalecimento de centros de comando integrados em tempo real como medidas urgentes.

Para Marcelo Almeida, o passo adiante das forças de segurança está na capacidade de rastrear recursos, interromper cadeias de comando do crime e atingir o núcleo estrutural das organizações. “Tudo isso passa, impreterivelmente, por investimento em tecnologias de ponta e capacitação. O Estado não pode, o tempo todo, estar atrás, precisa estar um passo a frente do crime organizado. Tecnologia, inteligência e capacitação profissional são essenciais para o famoso follow the money [siga o dinheiro]”.

“Não adianta subir morro, fazer operação e manter o coração financeiro do crime organizado atuando normalmente. É essencial asfixiar financeiramente e, para isso, é preciso investimento em tecnologia de ponta, investigação, treinamento e valorização das forças de segurança”, complementa o investigador aposentado das forças federais de segurança, Sérgio Leonardo Gomes.

7. Treinamento contínuo e valorização das forças de segurança

Para Paulo Storani, a profissionalização das forças de segurança é central na reconstrução da autoridade estatal. “Treinamento constante e interdisciplinar é o que diferencia a polícia moderna da força bruta”, defende.

Ele sugere programas de capacitação em operações urbanas, mediação de conflitos e uso proporcional da força, além de intercâmbio com unidades de outros países. “A formação deve priorizar o preparo psicológico e a valorização da vida — tanto dos agentes quanto dos civis”, avalia.

Sérgio Gomes vai no mesmo caminho. Para ele, programas como os de treinamento de polícias comunitárias, como ocorreu no auge das UPPs, precisam ser retomados, não contando apenas com profissionais capacitados para o confronto e operacional tático. “A comunidade precisa se sentir representada pela polícia e isso exige treinamento das forças de segurança como uma polícia comunitária, mas tão importante quanto isso é cuidar das forças de segurança, com salários dignos, qualidade de vida e amparo psicológico e social”, avalia.

A avaliação de Gomes é contraditória com documentos produzidos pela Intervenção Federal em 2018, que constatou que o treinamento de polícia comunitária não era suficiente para o combate a facções organizadas em grandes favelas. Na época, policiais comunitários passaram a ser treinados em técnicas de combate urbano com fuzis e blindados. Policiais comunitários não têm esse tipo de treinamento.

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8. Reestruturação das carreiras policiais

O ex-investigador Sérgio Gomes avalia que a estrutura das carreiras policiais precisa ser revista para aumentar eficiência e integração. “Hoje há sobreposição de funções e rivalidades institucionais. É preciso unificar critérios e estimular a meritocracia”, explica.
Ele também defende melhores salários e planos de carreira que estimulem a permanência e o comprometimento. “Sem valorização, a corrupção encontra terreno fértil entre as forças de segurança e o Estado perde o controle de parte do seu contingente”.

Somado a isso, como não há planos efetivos de cargos e carreiras na polícia, uma das formas de aumento salarial acaba se transformando na promoção de cargos, ao ponto que, em dado momento, pode haver mais oficiais do que praças. Isso diminui a capacidade operacional da polícia e aumenta seus gastos previdenciários.

9. Corregedoria ativa e combate à corrupção

O fortalecimento de uma corregedoria independente e atuante é considerada essencial para restabelecer a confiança da população nas forças de segurança. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as denúncias de abuso e corrupção entre agentes ainda são um dos maiores entraves à legitimidade policial.

Storani defende que o combate à corrupção dentro das corporações deve ser contínuo e transparente. “Não há autoridade legítima sem integridade. O policial precisa ser exemplo de lei, não exceção a ela”, afirma.

Para Gomes, com a corrupção entranhada na segurança pública, as corregedorias e autoridades não devem temer “cortar na própria carne”. “É essencial investigações internas, tirar do trabalho quem está nas forças de segurança e a serviço do crime organizado. Isso não é novidade, nem surpresa, mas precisa ser combatido com rigidez”, completa.

10. Endurecimento da legislação e classificação do crime organizado como terrorismo

Para Alessandro Visacro, o atual patamar de poder das facções exige um novo enquadramento jurídico. “O Brasil vive um conflito armado interno. Quando grupos controlam territórios, impõem normas e desafiam o Estado, isso se aproxima do conceito de terrorismo”, argumenta.

Storani defende que essa classificação, emergencial, permitiria a ampliação de penas, o uso de leis de exceção e cooperação internacional no combate às organizações criminosas. “O Estado precisa tratar o problema como uma ameaça à soberania, não apenas à ordem pública”.

Para Gomes, a operação no Alemão e na Penha demonstrou que, apesar da força tática, o Estado ainda atua de forma reativa e fragmentada. Paulo Storani alerta que, “a polícia faz o que lhe cabe — aplicar a força. Mas o resto do Estado precisa entrar para ficar”.
“Só uma estratégia de longo prazo, baseada em tecnologia, inteligência, presença institucional e transformação social, poderá romper o ciclo que mantém o Rio — e o Brasil — reféns do crime organizado”, conclui.

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